Violência
sexual intrafamiliar praticada contra a criança: A quem compete produzir a
prova?
A
condição de sujeito de direitos é uma conquista recente da criança. A infância,
historicamente vista como objeto a serviço dos interesses dos adultos, a partir
do século XX, passa a ser compreendida como etapa do desenvolvimento humano.
Vários documentos internacionais alertam para a sua relevância, desencadeando a
revisão das legislações, condutas e procedimentos adotados com o intuito de
garantir direitos àqueles que ainda não atingiram dezoito anos. No Brasil, a
Constituição Federal de 1988, em consonância com a Convenção das Nações Unidas
sobre os Direitos da Criança, é o divisor de águas, seguida, em 1990, pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente. O princípio do interesse superior da
criança encontra seu fundamento no reconhecimento da peculiar condição de
pessoa humana em desenvolvimento atribuída à infância, valendo lembrar que
"os atributos da personalidade infanto-juvenil têm conteúdo distinto dos
da personalidade dos adultos", trazem uma carga maior de vulnerabilidade,
autorizando a quebra do princípio da igualdade; enquanto os primeiros estão em
fase de formação e desenvolvimento de suas potencialidades humanas, os segundos
estão na plenitude de suas forças.
Devido à
vulnerabilidade, as crianças estão expostas a várias formas de violência, sendo
que a violência sexual intrafamiliar é a que traz maiores dificuldades de
manejo, responsável por sequelas que podem acompanhar a sua vida, com reflexos
no campo físico, social e psíquico, justificando o envolvimento de
profissionais de várias áreas do conhecimento na busca de alternativas de
minorar os danos. É comum a violência sexual intrafamiliar praticada contra a
criança vir desacompanhada de vestígios físicos, acarretando para o Sistema de
Justiça inúmeras dificuldades para desvendar os comunicados e ocorrências que
chegam ao Conselho Tutelar e à Delegacia de Polícia, assim como as denúncias
que aportam nas Varas Criminais e nos litígios que se deflagram nas Varas de
Família, através de disputas de guarda e regulamentação de visitas. A
inexistência de vestígios físicos, aliada à falta de testemunhas presenciais,
uma vez que a violência sexual intrafamiliar praticada contra a criança
geralmente se dá na clandestinidade, levaram os Tribunais a valorizar a palavra
da vítima, favorecendo a sua exposição a inúmeros depoimentos no afã de
produzir a prova e possibilitar a condenação do réu.
Exigir da
vítima a responsabilidade pela produção da prova da violência sexual, através
do depoimento judicial, como costumeiramente se faz, não seria uma nova
violência contra a criança? Estaria a criança obrigada a depor? Estes e outros
questionamentos precisam ser enfrentados sob a ótica da Doutrina da Proteção
Integral.
O
reconhecimento dos direitos humanos e o avanço dos conhecimentos na área da
saúde mental exigem novas formas de proceder visando assegurar à criança o
desenvolvimento, em condições de dignidade, passando a ser dever de todos
evitar qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão (artigos 5º e 70 do ECA). Inquirir a vítima, ainda que através
de métodos que visam dar outra roupagem à inquirição , com o intuito de
produzir prova e elevar os índices de condenação, não assegura a credibilidade
pretendida, além de expor, a criança, a nova violência, ao forçá-la a reviver
situação traumática, renovando o dano psíquico produzido pelo abuso. Enquanto a
primeira violência foi de origem sexual, a segunda passa a ser psíquica e
jurídica, na medida em que se espera que a materialidade, que deveria ser
produzida por peritos capacitados, venha ao bojo dos autos através do
depoimento da criança, sem qualquer respeito às suas condições de imaturidade.
Direito de ser "ouvida", como prevê a Convenção (art. 12), não tem o
mesmo significado de ser "inquirida". Considerar a "fala"
da criança necessariamente não exige o uso da palavra falada, porquanto o
sentido da norma é muito mais amplo, estando a significar a necessidade de
respeito incondicional à criança em face de suas condições de desenvolvimento.
A inquirição destina-se a produzir prova, podendo levar o abusador, com quem
tem laços afetivos, ainda que distorcidos, à cadeia, recaindo sobre a ela a
responsabilidade pelo evento. É comum, a criança avistar o abusador, no
ambiente forense, por ocasião de sua inquirição, ainda que o depoimento não
seja prestado na sua presença, fato que contribui para reacender o conflito e a
ambivalência de seus sentimentos, porquanto, em muitos casos, "nutre forte
apego pelo abusador, com quem, no mais das vezes, mantém vínculos parentais
significativos". Delegacias de Polícia, Fóruns e Tribunais não são locais
apropriados para crianças; são, essencialmente, espaços de resolução de
litígios envolvendo adultos.
A
perícia, levada a efeito por psicólogos e/ou psiquiatras, especialistas na
infância e adolescência, no lugar da inquirição judicial da criança, nos crimes
envolvendo violência sexual, com ou sem vestígios físicos, mostra-se a melhor
alternativa, permitindo ao Julgador obter a prova através da constatação das
lesões ou danos ao aparelho psíquico da vítima, podendo a autoridade judiciária
e as partes oferecerem quesitos a serem respondidos pelo Perito . Quando a
violência deixa vestígios físicos, não é a autoridade judicial que faz a
constatação direta das lesões, na sala de audiências, cabendo ao médico perito
examinar o corpo da vítima, em ambiente preservado, descrevendo os achados que
serão disponibilizados não só ao Julgador como também às partes, assegurado o
contraditório e a ampla defesa preconizados na Constituição Federal.
Sustentamos
que a autoridade judicial, diante de pedido dos representantes legais da
vítima, da própria vítima ou do Ministério Público, devidamente justificado, de
dispensa de prestar depoimento, poderá deferi-lo, levando em consideração as
condições pessoais da criança, como idade, aspectos emocionais, existência de
vínculo familiar ou afetivo com o réu. Ademais, "a criança pode sempre se
recusar a falar diante do juiz", "o direito à oitiva tem como
corolário o direito de recusar de exprimir-se, isto é, o direito ao silêncio",
garantido expressamente na Carta Maior, inclusive, ao réu (artigo 5º, inciso LXIII,
da Constituição Federal).
Substituir
a inquirição da criança vítima de violência sexual intrafamiliar pela perícia
psicológica e/ou psiquiátrica, através de profissionais especializados na área
da infância, aliada a outros elementos de prova, como o estudo social e a
avaliação do próprio abusador (via de regra poupado até mesmo de uma criteriosa
avaliação), é o caminho capaz de assegurar à criança a proteção integral que a
lei lhe confere, reservando-se a medida apenas aos casos em que a criança
manifesta o desejo de ser ouvida pela autoridade judicial.
É momento
de pensar em instrumentos para averiguar o dano psíquico, situado no campo da
proteção à saúde, em substituição à exigência da inquirição da vítima, quando
criança, evitando a reedição do trauma já experimentado. Profissionais de
várias áreas começam a perceber a relevância de sua atuação na proteção à
criança, repensando procedimentos e investindo em ações abraçadas pelo manto da
interdisciplinaridade. A mudança é lenta e há de começar por aqueles que
acreditam na possibilidade de avançar, mantendo acessa a chama da esperança e
preservando espaço para o sonho de uma vida mais digna à criança.
Escrito por: Maria Regina Fay de Azambuja, procuradora de Justiça integrante do
Ministério Público do Rio Grande do Sul. Fonte: http://www.crianca.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=1449. Acesso em: 22/08/2014.
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