Resumo:
Violência sexual contra crianças não é um evento incomum; no entanto, há a
dificuldade de denúncia, pois, além do estabelecimento da relação de dominação
que o agressor exerce sobre a vítima, a maneira como tal fato é recebido pela
sociedade e como é encaminhado pelas instituições judiciárias responsáveis
também é determinante para as omissões. Inserida no universo dos
interrogatórios, muitas vezes, a criança causa confusão ao desmentir o que
havia falado antes, reforçando possíveis preconceitos em relação a si mesma. O
presente trabalho traz a análise das relações entre a infância e a instituição
judiciária, com principal enfoque no sistema de comunicação e de notificação
dos crimes sexuais contra a criança e as consequentes intervenções profissionais
que buscam a validação, ou não, de seu testemunho. Para tanto, foram
pesquisados 51 processos judiciais, dos quais foram selecionados dois casos
exemplares. Este trabalho evidencia a possibilidade de preservar a criança da
revitimização causada pela multiplicidade de interrogatórios, sem deixar de
cumprir as normas jurídicas necessárias. A fragilidade da palavra da criança
está na forma como é acolhida pelos adultos, desde a revelação na família até a
denúncia aos órgãos oficiais, revelando a urgência de alterações nos
procedimentos judiciais relacionados a essa problemática.
Palavras-chave:
Abuso da criança. Psicologia forense. Comunicação interpessoal. Representação
social.
A
inserção da Psicologia no Poder Judiciário propiciou uma nova relação entre a Justiça
e a infância, uma vez que sua atuação, desde a implantação do Estatuto da
Criança e do Adolescente, se direciona aos assuntos afetos a essa área do
Direito. A Psicologia, como mediadora entre a criança e o contexto judiciário,
participa da trajetória histórica da infância brasileira, exigindo do
profissional um compromisso ético e uma boa qualidade de escuta. Na
especificidade desse contexto, no qual as demandas diárias são bastante
complexas e exigem respostas sobre a criança e sua subjetividade, foi que
surgiu a motivação para uma pesquisa relacionada à credibilidade do testemunho
da vítima infantil nos crimes sexuais.
O enfoque principal da pesquisa contempla a trajetória percorrida entre a suspeita e a validação do abuso sexual infantil, partindo do discurso da criança e do discurso daqueles que a interrogam. A análise, portanto, foi realizada desde a revelação até a sentença judicial, evidenciando as diferentes possibilidades de intervenção profissional a que a criança, habitualmente, é submetida. No âmbito judiciário, além de toda a complexidade que o fenômeno do abuso sexual suscita, há que se pensar na responsabilização penal do acusado e na garantia à criança de proteção e benefícios.
O enfoque principal da pesquisa contempla a trajetória percorrida entre a suspeita e a validação do abuso sexual infantil, partindo do discurso da criança e do discurso daqueles que a interrogam. A análise, portanto, foi realizada desde a revelação até a sentença judicial, evidenciando as diferentes possibilidades de intervenção profissional a que a criança, habitualmente, é submetida. No âmbito judiciário, além de toda a complexidade que o fenômeno do abuso sexual suscita, há que se pensar na responsabilização penal do acusado e na garantia à criança de proteção e benefícios.
Na
cultura brasileira, a sexualidade é um tema interdito para a infância. e,
quando a criança se vê frente às intervenções policiais e judiciárias, nem
sempre encontra acolhimento adequado e eficaz que lhe ofereça segurança para
sustentar e ratificar sua narrativa anterior. Os discursos sociais sobre o
abuso sexual infantil estão em processo de construção, porque somente há três
décadas o tema tem sido mais frequentemente debatido nas universidades, nas
organizações da sociedade civil, pelos órgãos públicos e pelos profissionais de
educação, de saúde e da Justiça. A ausência de esclarecimentos e de produções
científicas favoreceu o desenvolvimento de uma representação social do abuso
sexual infantil elaborada com base no conhecimento de senso comum e que se
incorporou aos pensamentos preexistentes sobre a sexualidade.
Todavia,
a exigência social e jurídica de posicionamentos efetivos sobre a violência
sexual contra crianças transformou as representações sociais relacionadas a
essa temática. Tal reflexão encontra respaldo na afirmação de Jodelet (2001, p.
20) de que “(...) um acontecimento que surge no horizonte social, que não se
pode mostrar indiferente, mobiliza medo, atenção e atividade cognitiva para
compreendê-lo, dominá-lo e dele se defender”. A partir da necessidade de
responsabilização do abuso sexual infantil, bem como de sua discussão na mídia
e nas universidades, é que os significados produzidos socialmente se
transformaram.
Assim,
ao atingir o âmbito da Justiça, as representações sociais da infância, da
sexualidade e da violência, individualmente construídas pelos operadores do
Direito, serão também incorporadas ao grupo em suas atuações profissionais. Na
dependência de tais representações, está o trabalho dos profissionais que
acolhem e encaminham a notificação do crime, buscando a verdade dos fatos e validando,
ou não, o testemunho da vítima. Os discursos contidos nos autos processuais são
importantes fontes de análise da atuação profissional e da expressão da
representação social desse fenômeno, principalmente no grupo de profissionais
que se relacionam diretamente com a criança na fase probatória do processo
judicial.
O
Estatuto da Criança e do Adolescente, no art. 2º, parágrafo único, considera
“(...) criança, para efeitos desta lei, a pessoa de até doze anos de idade
incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade”. Baseado
no princípio da Doutrina da Proteção Integral da Organização das Nações Unidas
(ONU), tal Estatuto oportuniza a criança um tratamento jurídico diferenciado e
protetivo, garantindo-lhe direitos contra a exposição e o constrangimento. Sob
esse prisma, o presente trabalho discute a maneira como a Psicologia e o
Direito convergem para a produção de novos procedimentos judiciais.
Os
processos judiciais pesquisados evidenciam o valor do testemunho da criança, o
qual é habitualmente questionado pelo Delegado de polícia, pelo Juiz de
Direito, pelo Promotor de Justiça e pelo advogado do acusado, que, ao
solicitarem o laudo pericial referente à veracidade das declarações infantis,
expõem as dificuldades em reconhecer e enfrentar o fenômeno da vitimização
sexual.
Metodologia
O
objetivo desta pesquisa foi proporcionar uma revisão dos paradigmas jurídicos
frente à problemática da criança vítima de abuso sexual, caracterizando as
relações entre a infância e a instituição judiciária, na qual também está
incluída a instituição policial. O enfoque principal foi o sistema de
comunicação e notificação desse crime e as consequentes intervenções
profissionais que buscam a validação do relato da criança.
A
história contida em cada processo judicial não é apenas a do indivíduo que
busca ou é forçado a buscar o serviço da Justiça mas também dos profissionais
que nela atuam, como os Conselheiros Tutelares, os Delegados de polícia, os
Promotores de Justiça, os Juízes de Direito, os médicos, os psicólogos e os
assistentes sociais. Por tais motivos, a estratégia de pesquisa no acervo
judiciário fornece base para uma generalização científica, com casos práticos
que explicitam o fenômeno sob condições diferentes, sendo o estudo de casos
múltiplos uma das metodologias mais adequadas a esse propósito.
A
coleta de dados foi feita em situações cotidianas e na consulta aos autos
processuais de crimes sexuais contra crianças, mediante a análise documental e
sem os limites controlados de um experimento laboratorial ou da estrutura de um
questionário. Assim, utilizando o estudo de casos, foi possível integrar os
acontecimentos reais e cotidianos à linha de investigação traçada no projeto de
pesquisa. Uma das vantagens do estudo de caso, e que se incorpora ao
referencial teórico empregado, a teoria das representações sociais, é que as
inferências da pesquisadora foram realizadas sobre algo que já ocorreu, sendo
as evidências do caso questionadas e delimitadas por ela. Os processos
judiciais foram usados como fonte de evidência para a análise documental e
descrevem os casos, permitindo o desenvolvimento de proposições teóricas bem
como a coleta e a análise dos dados.
A
observação participante foi outra fonte de evidência utilizada, já que, como
profissional da instituição judiciária, houve a participação da pesquisadora
nos eventos investigados, oportunizando o acompanhamento dos procedimentos
judiciais e as relações que se estabeleceram entre a instituição, a vítima e
seus familiares. Tal participação ocorreu mediante as entrevistas no Fórum, a
elaboração dos laudos periciais e as audiências, pois, atuando como
profissional, estava inserida no cotidiano da instituição e nos grupos de
profissionais. Essa modalidade ofereceu à pesquisadora a capacidade de perceber
a realidade de alguém que está dentro do estudo de caso, de um ponto de vista
interno, e não externo.
A
importância da adoção de mais de uma fonte de evidências oferece credibilidade
à pesquisa, visto que as informações foram corroboradas. A organização e a
documentação dos dados também foram relevantes para proporcionar confiabilidade
ao trabalho, destacando dos casos suas principais características e gerando um
banco de dados para uma inspeção independente.
A
interpretação das informações aconteceu à medida que foram coletadas,
verificando-se conjuntamente se as fontes de informação demonstravam
contradição e se necessitavam de outras fontes para confirmá-las.
Os processos judiciais são documentos que
registram um encadeamento de evidências sobre um determinado acontecimento nos
quais existe conflito de interesses entre duas ou mais pessoas; por esse
motivo, são referenciais importantes de investigação científica, revelando
casos exemplares para um estudo completo. Na presente pesquisa, foram consultados
51 processos judiciais associados ao abuso sexual infantil e juvenil,
pertencentes a três Comarcas de pequenas cidades do interior paulista. Os
Juízes responsáveis pelas Varas Criminais em que se deu a pesquisa concederam
autorização judicial para a consulta aos autos processuais, desde que
resguardadas não só as identidades dos envolvidos como também dos profissionais
que neles atuaram. Os critérios usados para a referência aos casos foram
números aleatórios, em um recorte temporal dos anos de 2000 a 2006 e com a
participação da Psicologia, mediante a escuta da vítima e a elaboração do laudo
pericial. A idade das vítimas variou entre 03 e 14 anos, contados do período em
que foi realizada a avaliação psicológica no Fórum, havendo a predominância do
sexo feminino e da proveniência de meio sociocultural empobrecido.
Ainda que a ênfase do trabalho esteja voltada
para a criança e não para o adolescente, constatou-se que alguns processos
chegaram à Seção de Psicologia para a elaboração da avaliação psicológica
quando a ocorrência do crime já ultrapassara dois anos, de modo que a vítima,
que era criança na época do atentado, na data da entrevista, estava na
adolescência. Outra situação observada foi que, em algumas situações, a
denúncia formal ocorreu na adolescência, mas o processo abusivo continuado
acontecia desde a infância. Nesse último caso, a narrativa e as recordações da
vítima sofreram alterações não somente pelo tempo, mas também pelos conflitos
internos típicos da fase em que se encontrava; todavia, para esta pesquisa, a
importância está na atuação dos profissionais envolvidos e na confiabilidade
que é dada ao discurso da vítima. Os dois processos judiciais selecionados para
o estudo de caso seguiram a lógica da replicação, pois, conforme Yin (2005, p.69),
“(...) cada caso deve ser cuidadosamente selecionado de forma a prever
resultados semelhantes (uma replicação literal) ou produzir resultados
contrastantes apenas por razões previsíveis (uma replicação teórica)”. Os dois
casos eleitos para a análise individualizada expõem diferentes sistemas de
notificação do abuso sexual e de encaminhamento da oitiva da vítima, em
situações de contraste. No entanto, apresentaram características básicas
semelhantes, como o sexo feminino, a idade das vítimas – 07 e 08 anos –, o
processo abusivo intrafamiliar, no qual o pai é o agressor, e a utilização da
avaliação psicológica como parte do conjunto probatório. Ambos os casos
ofereceram elementos para a explicitação dos procedimentos e atendimentos
habituais às vítimas de abuso sexual infantil e para a necessidade e a
possibilidade de modificá-los, e também evidenciaram as dificuldades
relacionadas à confiabilidade no testemunho da criança. Através de um sistema
comparativo, demonstraram como as condições de acolhimento da denúncia
interferem na confirmação ou na retratação da criança do seu discurso inicial.
No
caso 1, há características comuns à maioria dos casos pesquisados: a denúncia
foi recebida pela Delegacia de Polícia e iniciado o inquérito policial; a
vítima confirmou o abuso sexual em dois depoimentos na Delegacia; após a prisão
temporária do réu e envio do inquérito ao Poder Judiciário, a vítima foi
atendida pela psicóloga judiciária e desmentiu o atentado, durante a entrevista
psicológica no Fórum; a genitora também modificou seu discurso, contradizendo
em juízo seu depoimento na Delegacia; a vítima não foi ouvida em audiência,
sendo determinada a avaliação psicológica no intuito de protegê-la; a avaliação
psicológica confirmou o abuso sexual, embora, na entrevista, a vítima o tenha
desmentido; o Juiz de primeira instância absolveu o réu, alegando fragilidade
no conjunto probatório e dúvidas diante do fato de a criança desmentir o abuso,
na entrevista psicológica; há apelação do Ministério Público baseada no laudo psicológico;
há acórdão reconhecendo o laudo como prova para a condenação do réu; o réu foi
condenado em segunda instância.
No
caso 2, ainda que dentro da legalidade, a denúncia foi recebida de maneira
incomum: a avaliação psicológica foi o primeiro procedimento empregado com a
vítima; a denúncia foi recebida pela Vara da Infância e Juventude, e a vítima
atendida no Fórum para a entrevista psicológica, sendo preservada da
multiplicidade dos interrogatórios; confirmou o abuso sexual na entrevista com
a psicóloga judiciária; a genitora e o acusado foram atendidos na Seção de
Psicologia, no dia seguinte à denúncia, sendo cientificados de seu teor; o
acusado confessou os atos libidinosos cometidos contra a criança, na entrevista
psicológica, na Promotoria da Infância e Juventude e em audiência; o caso foi
encaminhado à Vara Criminal; a vítima não foi ouvida na Delegacia de Polícia,
somente em audiência no Fórum, mas em um momento em que se encontrava protegida
e segura de ameaças; o Juiz de primeira instância condenou o acusado,
utilizando a avaliação psicológica no conjunto probatório, sendo esse réu
confesso; houve recurso do advogado do réu, requerendo a diminuição da pena
imputada.
O
modelo lógico de nível individual foi adotado para descrever o encaminhamento
dos procedimentos que envolvem a vítima e as diferentes interferências que
sofre a partir da revelação. A dinâmica dos acontecimentos foi representada em
um fluxograma interativo entre os dois estudos de caso realizados, e a análise
de conteúdo dos processos judiciais revelou o conjunto de evidências que
colaboraram para o deslinde da ação judicial, salientando a importância da
intervenção de cada profissional para a segurança da confirmação da violência
pela vítima.
Resultados
Nos
casos de abuso sexual infantil, o psicólogo é chamado a atuar no contexto
judiciário devido às dificuldades implícitas que o tema sugere, uma vez que o
testemunho da criança é percebido como frágil e passível de sofrer sugestões ou
induções dos adultos envolvidos. O foco deste trabalho foi direcionado para a
problemática vivenciada pela vítima, ao deslocar-se da clandestinidade da
relação abusiva e enfrentar os questionamentos e os interrogatórios iniciados
com a revelação à pessoa de sua confiança até os procedimentos judiciais decisórios.
A
multiplicidade das intervenções institucionais foi observada nos 51 processos
pesquisados, com enfoque na ausência de uma sistemática tanto para a escuta da
vítima quanto para a inserção da Psicologia nos procedimentos judiciais, a qual
está na dependência da atuação dos Magistrados e dos Promotores de Justiça. Os
documentos contidos em cada processo judicial materializaram a passagem da
criança pelas diferentes instâncias de atendimento e demonstraram as efetivas
interferências em sua narrativa.
Os
processos judiciais foram selecionados a partir da elaboração do laudo
pericial, e, em 38 deles, os pareceres psicológicos apresentaram elementos
favoráveis para a confirmação da vitimização sexual ou, ainda, para a vivência
de uma relação de caráter abusivo na esfera da sexualidade. Nos demais
processos, não houve parecer conclusivo de que a vítima apresentasse
indicativos psicológicos de participação ou de exposição aos atos relatados.
Nesses processos, as avaliações psicológicas mostraram não só a resistência e a
negativa da criança em falar sobre o fato como também a ausência de indicadores
psicológicos para vitimização sexual e/ou das características de um discurso
próprio.
Os
danos psicológicos produzidos na vítima podem ser atribuídos tanto às
circunstâncias em que aconteceu o atentado quanto ao contexto de intervenção
impositiva feita pela família e/ou por profissionais a que foi submetida após a
revelação (Almeida, 2003; Gabel, 1992; Machado, 2003; Volnovich, 2005). Tal
fato pôde ser constatado nas avaliações psicológicas pela análise do discurso e
das reações da vítima, durante as entrevistas psicológicas, não se descuidando
de averiguar as circunstâncias em que ocorreu a denúncia.
Os
processos criminais consultados apresentaram, concomitantemente,
características semelhantes e concorrentes, oferecendo parâmetros comparativos
das diferentes formas de atuação profissional e sua interferência nos
procedimentos judiciais. Tais documentos evidenciaram aspectos da representação
social do abuso sexual infantil associada à crença na fragilidade do testemunho
da criança e em sua suscetibilidade para a indução e para a fantasia,
corroborando o que Moscovici (2007) afirma sobre as representações sociais
servirem para familiarizar o não familiar. A crença na criança mentirosa,
portanto, torna-se mais aceitável e menos perigosa, no sentido de induzir ao
erro, do que a crença na realidade da prática de atos sexuais entre um adulto e
uma criança.
Por
outro lado, através do recorte temporal da pesquisa, foram notáveis os
progressos nas manifestações que compõem os relatórios de inquérito policial,
os requerimentos dos Promotores de Justiça e as determinações dos juízes de
Direito frente aos casos de abuso sexual infantil. Os registros ressaltaram a
aceitação de que a Psicologia traz uma compreensão específica da infância e da
sexualidade capaz de auxiliar no deslinde adequado das ações judiciais e de
promover um atendimento não revitimizante.
Há
uma predominância, nos casos pesquisados, do reconhecimento do Promotor de
Justiça e do Juiz de Direito da necessidade da intervenção de um profissional
habilitado e familiarizado com o trato da infância, identificado no psicólogo
judiciário. Ainda que esse posicionamento confirme a efetiva participação da
Psicologia, nos procedimentos afetos aos crimes sexuais cometidos contra a
criança, não há regularidade e uniformidade de condições especiais e protetivas
para a oitiva da vítima. Observa-se, todavia, que há um movimento das
autoridades judiciárias em preservar a criança do constrangimento e da
revitimização, admitindo o desconforto e a inadequação das condições oferecidas
na audiência para a tomada de seu depoimento.
Os
dois casos judiciais escolhidos como exemplares e estudados neste trabalho
exibiram em seu conteúdo um conjunto de ações que demonstram as dificuldades
reais enfrentadas no contexto judiciário, no qual também se inclui o contexto
policial. Os trâmites judiciais são complexos e se diferenciam entre as
Comarcas, alterando as relações de trabalho estabelecidas em cada Fórum.
Averiguou-se
que há uma constância de terminologias empregadas nos Boletins de Ocorrência e
nos depoimentos nas Delegacias de Polícia que revelam um discurso que não é o
da criança, mas o do interlocutor. As inquirições são descritas sem um
esclarecimento acerca das condições em que foram realizadas as entrevistas
investigativas, não deixando de salientar, entretanto, que foram realizadas na
presença do responsável legal, já que é o procedimento exigido.
A
crença de que a experiência do abuso sexual causa danos psicológicos à criança
interfere igualmente na intervenção jurídica, visto que se espera da vítima um
conjunto de características padronizadas pela literatura especializada, baseada
nos padrões norte-americanos de conduta e, quando isso não é constatado, a
tendência é desacreditá-la. Observou-se que as avaliações psicológicas somente
foram validadas como prova técnica nos processos judiciais, quando constataram
danos psicológicos ou reações potencializadas nas vítimas, ou mesmo quando
ratificaram os depoimentos documentados nos autos processuais.
Contudo,
nos casos em que a vítima não apresentou danos, os laudos psicológicos
apontaram as características da narrativa da criança a respeito do atentado
sexual que evidenciam as interferências das circunstâncias em que se efetivou o
processo abusivo. A representação do agressor na vida da vítima é outro fator a
ser considerado, pois, em alguns dos casos, os profissionais que acolheram as
denúncias foram surpreendidos pela reação emotiva de compaixão e afeto da
vítima em relação ao agressor, levando-os a descrer de suas palavras.
Percebe-se que a representação social do abuso sexual infantil está vinculada
ao sofrimento psicológico da vítima, porém, a Psicologia enfrenta o desafio de
elaborar uma análise que, ao mesmo tempo em que beneficia a criança, oferece
subsídios para a decisão judicial.
Os
processos judiciais deixam claro que, no âmbito judiciário, além de toda a
complexidade do testemunho da criança vítima de abuso sexual, há a necessidade
da responsabilização penal do acusado. Assim, são evidentes as falhas nas
práticas judiciárias relativas ao acolhimento do testemunho da criança, que
urgem por mudanças beneficiárias tanto para a vítima como para os
profissionais, sem ferir a aplicabilidade da lei.
A
representação social da infância está realçada no processo social e judicial em
que a criança é inscrita, quando rompe o silêncio e traz à tona fatos difíceis
de serem ouvidos. Por força de um sistema de crenças, a palavra da criança é desvalorizada
não apenas pela família mas também pelos agentes judiciais no momento do
acolhimento da denúncia, de sorte que o que já era difícil se torna
insuportável para ela, podendo levá-la a desmentir o que havia dito
anteriormente. Quando a criança traz a um adulto uma narrativa capaz de alterar
a dinâmica dos relacionamentos, é, imediatamente, resgatada a dúvida a
propósito da veracidade de sua fala, já que a fragilidade está incorporada à
representação social da infância. As pressões para que a criança fale a
verdade, alertando-a sobre a gravidade das consequências do que declarou, na
maioria das vezes reprime sua espontaneidade e segurança em relatar os fatos
vividos, sendo esse um fator que leva ao descrédito (Gabel, 1992; Machado,
2002; Mello, 2006).
Contudo,
nos casos em que a vítima não apresentou danos, os laudos psicológicos
apontaram as características da narrativa da criança a respeito do atentado
sexual que evidenciam as interferências das circunstâncias em que se efetivou o
processo abusivo. A representação do agressor na vida da vítima é outro fator a
ser considerado, pois, em alguns dos casos, os profissionais que acolheram as
denúncias foram surpreendidos pela reação emotiva de compaixão e afeto da
vítima em relação ao agressor, levando-os a descrer de suas palavras.
Percebe-se que a representação social do abuso sexual infantil está vinculada
ao sofrimento psicológico da vítima, porém, a Psicologia enfrenta o desafio de
elaborar uma análise que, ao mesmo tempo em que beneficia a criança, oferece
subsídios para a decisão judicial. Os processos judiciais deixam claro que, no
âmbito judiciário, além de toda a complexidade do testemunho da criança vítima
de abuso sexual, há a necessidade da responsabilização penal do acusado. Assim,
são evidentes as falhas nas práticas judiciárias relativas ao acolhimento do
testemunho da criança, que urgem por mudanças beneficiárias tanto para a vítima
como para os profissionais, sem ferir a aplicabilidade da lei.
Dentro desse contexto, percebe-se que, na sala
de audiências, é comum as crianças se mostrarem retraídas, pouco receptivas e
com discurso lacônico, bem como nas Delegacias de Polícia se revelarem
assustadas e pouco elucidativas diante da intensidade dos interrogatórios e da
presença de várias pessoas. A participação do psicólogo nesses procedimentos é
fundamental para a oferta de uma escuta especializada e protetiva, porque,
conforme Volnovich (2005), mesmo com a criança provida de direito à
participação nos assuntos relativos à sua vida, há uma tendência dos adultos em
desconsiderar tal fato, o que dificulta ainda mais a maneira como se preparam
para ouvi-la. Aceitar que a criança possui percepção e opinião sobre as pessoas
e os acontecimentos de sua vida é o primeiro passo para compreendê-la e oferecer-lhe
uma escuta adequada.
Quando
se questiona a validade do testemunho de uma criança no contexto do judiciário,
é fundamental a reflexão sobre a forma como a criança é recebida nas diferentes
instituições, quando quebra o segredo da clandestinidade de uma relação abusiva
e busca coragem para libertar-se do jugo daquele que a aprisiona. Constatou-se,
nesta pesquisa, que a fragilidade do testemunho da criança está relacionada aos
modos de acolhimento da denúncia do abuso sexual, e não propriamente ao seu depoimento,
pois, mesmo antes do enfrentamento dos procedimentos judiciais, ela se depara
com a surpreendente reação de seus familiares e começa a sofrer um calvário de
interrogatórios.
As
fontes de notificação do abuso sexual infantil iniciam-se pela revelação da
criança à família, à vizinhança ou à escola, e, passado o embaraço que envolve
os adultos escolhidos e a reflexão destes sobre a atitude a ser tomada, ela é
encaminhada à Delegacia de Polícia e/ou ao Conselho Tutelar. Na Delegacia, é
feito o Boletim de Ocorrência, e, tomado o depoimento da vítima, na presença de
seus responsáveis legais e/ou na de um Conselheiro Tutelar, começa a
investigação do caso e o posterior encaminhamento ao Poder Judiciário.
Habitualmente,
os casos são encaminhados à Delegacia de Defesa da Mulher e, quando as
evidências revelam a veracidade do abuso sexual, esse órgão encaminha a vítima
ao Instituto Médico Legal (IML) para o Exame de Corpo de Delito, onde é
realizada a avaliação ginecológica da menina e anal do menino. Tal exame quase
sempre coopera para a incredulidade na palavra da criança, já que os atos
libidinosos não deixam marcas físicas.
Outro
encaminhamento realizado e existente em alguns Municípios são os programas de
atendimento às vítimas, que pertencem à Secretaria de Saúde e têm o objetivo de
orientar sobre a prevenção das doenças sexualmente transmissíveis. Nota-se,
portanto, que a vítima é submetida a algumas intervenções, no decorrer do
inquérito policial, incomuns ao seu cotidiano, que a assustam e surpreendem pelo
grau de informações e pela percepção da gravidade dos atos a que foi submetida.
Foi observado que os procedimentos da investigação do abuso sexual infantil
envolvem igualmente técnicos e profissionais que atuam direta e indiretamente
com a criança, formando um conjunto interdisciplinar, mas que, não
necessariamente, têm suas atividades vinculadas e equiparadas.
Os
casos 1 e 2 foram descritos e analisados de maneira cruzada, seguindo-se as
fases dos processos judiciais a que pertencem, contextualizando a criança
vítima de abuso sexual e os profissionais interlocutores nos procedimentos
judiciais. A exposição e a discussão dos casos foram feitas simultaneamente à
análise das práticas discursivas que compõem os processos judiciais e as
diferentes intervenções e procedimentos a que as vítimas foram submetidas,
desde a denúncia na Delegacia de Polícia até a sentença judicial em primeira e
em segunda instâncias.
No
caso 1, a inculpação do réu seguiu uma dispendiosa trajetória, bem como a
multiplicidade das intervenções à vítima contribuiu para que esta se sentisse
insegura e retificasse seu depoimento inicial, o que não somente lhe causou
prejuízos emocionais como também dificultou o trabalho da Justiça. Há de se
salientar as dimensões psicológicas das atuações profissionais, neste caso,
relacionando-as à forma como cada profissional, individualmente, assimila a
realidade social, influenciado por um processo histórico e ideológico que
determina seu modo de pensar e de agir. De acordo com Salles (1991), a ideologia
se concretiza nas representações sociais, e é expressa no exterior, no mundo,
pelas ações e pela linguagem das pessoas.
Nesse
caso, constataram-se dois tipos de posturas distintas: a do Juiz de primeira
instância, que optou por manter-se apegado apenas às normas jurídicas, a da
genitora da vítima, que preferiu revitimizar a filha, imputando-lhe o papel de
mentirosa diante da exposição social e, obviamente, o defensor do réu, que,
aproveitando-se das contradições, construiu a defesa. De outro lado, encontram-se
os demais profissionais, Promotor de Justiça, psicóloga, Procurador de Justiça
e Desembargadores, que utilizaram outros referenciais e representações para a
análise do abuso sexual, em uma clara valorização da palavra inicial da vítima
e das subjetividades contempladas na avaliação psicológica bem como nas
intercorrências que a antecederam. Ainda que a criança tenha retificado seu
discurso relativo ao depoimento na Delegacia de Polícia, durante a entrevista
psicológica, suas atitudes, reações e indicativos psicológicos foram
considerados compatíveis com aqueles comumente apresentados pelas vítimas de
crimes sexuais.
No
caso 2, não há a incredulidade na palavra da vítima, nem mesmo da denunciante,
pois as condições foram facilitadoras não só para a criança mas também para a
confissão do acusado. A interação entre os profissionais e, principalmente, a
disponibilidade do Juiz em oferecer condições para o acolhimento do testemunho
infantil foram essenciais para a preservação e a proteção da vítima, assim como
para o deslinde rápido e eficiente da ação judicial.
A
lógica possível das intervenções demonstrou a função de cada profissional e dos
familiares da vítima; o caso 2, portanto, mostra que a realização da escuta da
vítima pelo psicólogo pode substituir a oitiva formal de uma tomada de
depoimento, na Delegacia de Polícia e na audiência judicial, o que evita o
atendimento revitimizante e preserva seu discurso, uma vez que não há a
necessidade de múltiplos interrogatórios. Entretanto, para tal escuta especializada,
deverão ocorrer alterações na sistemática do acolhimento da denúncia, na qual a
inserção da Psicologia se dará imediatamente, após o início das intervenções.
Dessa forma, a atuação do psicólogo judiciário oferece tanto uma substituição
para a oitiva formal da criança em audiência quanto um espaço diferenciado para
que ela se expresse sem constrangimentos. Nos casos 1 e 2, a avaliação
psicológica foi empregada como parte do conjunto probatório, mas determinada em
fases processuais distintas, o que interferiu sobremaneira no discurso da
criança. Tal fato pode ser observado no caso 1, no qual o Juiz não aceitou o
parecer favorável da avaliação psicológica, em virtude de a vítima não haver
confirmado literalmente o abuso sexual sofrido, mas, em segunda instância, o
laudo psicológico foi reconhecido como prova.
No
primeiro caso, a Psicologia trabalhou no sentido de desconstruir a
representação social do abuso sexual pautado na incredulidade do testemunho da
criança, utilizando-se de recursos técnicos e teóricos para trazer à luz o
discurso latente da vítima, justificando sua retratação. No segundo caso, as
ações precederam as concepções da representação social do abuso sexual
infantil, e a Psicologia pôde atuar com liberdade sobre as demandas psíquicas da
vítima, preservando-a da revitimização dos múltiplos interrogatórios.
Discussão
A
pesquisa demonstra que, nos crimes sexuais, a palavra da criança tem real
importância, visto que, em sua vivência infantil, usa uma linguagem que traduz
as relações estabelecidas com os membros familiares e com seus pares no grupo
social a que pertence. As avaliações psicológicas contidas nos processos
judiciais valorizam a palavra infantil, pois, conforme as vítimas a utilizam
revelam não somente seu grau de maturidade psíquica mas também a intensidade de
sua compreensão da sexualidade humana e da estimulação social que recebe sobre
tal temática. A nomeação dada pela criança aos órgãos genitais, aos toques ou
ao ato sexual a que foi submetida expõe as influências que sofreu em sua
narrativa, se espontâneaou se construída por pressão ou indução de um adulto.
Assim,
deve-se evitar a validação do testemunho da vítima através da comparação de seu
depoimento tomado em uma Delegacia de Polícia com aquela analisada em um laudo
psicológico, conforme ocorreu no caso 1. O Juiz de primeira instância,
baseando-se nas contradições do que estava escrito nos documentos,
desconsiderou as técnicas e as teorias empregadas no laudo pericial. A
desvalorização efetiva do discurso da criança se materializa quando entra no
âmbito jurídico, e, apesar do grande avanço advindo do Estatuto da Criança e do
Adolescente, a prática ainda comprova a insegurança dos profissionais em
renunciar ao ideário da criança propensa à fantasia e à indução em sua retórica.
Quando vítima e testemunha compõem a mesma personagem na lide jurídica,
torna-se evidente a dificuldade a ser enfrentada pelas autoridades judiciárias
responsáveis pelo caso, sobretudo quando se trata de uma vítima criança.
O
caso 2 revelou que o acolhimento adequado e cuidadoso das palavras da criança e
o incentivo para que apresente suas ideias e percepções são fundamentais para
que se sinta segura e produza um discurso claro, coerente e próprio. Mediante
tal estratégia, valorizou-se a palavra da criança, oportunizando-lhe um fluxo
de comunicação com a Justiça capaz de garantir seu direito de se expressar
livre da opressão.
Conforme
explicita Gabel, “(...) o abuso sexual praticado contra a criança é uma das
formas de maus-tratos que mais se ocultam: a criança tem medo de falar e,
quando o faz, o adulto tem medo de ouvi-la” (1997, p.11). Esse pressuposto
define a realidade que envolve a maioria dos casos que chegam ao Poder
Judiciário e justifica o fato de a vítima desmentir em juízo o que afirmara na
família ou em uma instituição. No entanto, a Psicologia considera que não
apenas o que é dito verbalmente aponta caminhos para esclarecer as dúvidas ou
as suspeitas, mas também o comportamento não verbal. Assim, inserir a avaliação
psicológica no início dos procedimentos judiciais favorece tanto a expressão
quanto a proteção da vítima.
Grande
parte dos profissionais envolvidos nos processos de crimes sexuais de vítimas
crianças não recebe capacitação específica para realizar os procedimentos
necessários, sendo nítido, na análise dos processos judiciais, o despreparo
desses profissionais para ouvi-las. Os casos 1 e 2 evidenciaram dois sistemas
de notificação distintos, que fizeram o diferencial não só em relação ao tempo
despendido no processo de responsabilização do réu como também às intervenções
diretas e indiretas no testemunho da criança.
Embora,
no caso 1, a vítima não tenha sido ouvida em audiência pelo Juiz e a avaliação
psicológica tenha sido reconhecida como substituta para a oitiva, a demora em
formalizar a denúncia e a tomada de declarações na Delegacia de Polícia e no
Conselho Tutelar, assim como a intervenção do IML, contribuíram para prejudicar
o seu testemunho, já que este desmentiu o ato incestuoso na entrevista
psicológica. Em contrapartida, no caso 2, a vítima foi isentada das
intervenções anteriores e ofereceu um testemunho próprio, sendo resguardado seu
direito de participação pessoal nos procedimentos através de uma escuta não
revitimizante.
A
figura a seguir explicita os dois sistemas de notificação e o encadeamento das
intervenções sofridas pelas vítimas, sendo que a linha pontilhada indica a
diferenciação da trajetória do caso 2 em relação à do caso 1.
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Figura 1. Fluxograma do sistema de notificação |
O
fluxograma relativo ao caso 1 aponta o caminho habitual de todos os casos
consultados, havendo pequenas variações entre um e outro em função das
peculiaridades relativas a cada caso. O Exame de Corpo de Delito é solicitado
na maioria dos casos, sendo um procedimento rotineiro quando a denúncia
ingressa na Delegacia de Polícia, como também o encaminhamento da vítima aos
programas municipais de saúde e social.
Entretanto,
o fluxo relacionado ao caso 2 não foi constatado em nenhum dos outros 50 casos
consultados, sendo único. Nesse caso, o testemunho da criança esteve isento de
interferências anteriores à avaliação psicológica, o que contribuiu para sua
credibilidade, porém, a vítima foi inquirida em audiência pelo Juiz. Observa-se
que a oitiva da vítima pelo Juiz poderia ser evitada, já que, no caso 1, tal
fato não ocorreu e, mesmo assim, não invalidou nenhum dos procedimentos.
A
comparação dos dois casos revela que a busca da verdade, tantas vezes focada no
discurso da criança e nas contradições típicas da infância, deverá levar em
conta o conjunto de práticas discursivas de seus interlocutores, o qual é
incorporado no decorrer do processo judicial. No cotidiano das práticas
judiciárias, quando se trata de busca ou de pesquisa da verdade, seja nos
processos, seja nas audiências ou nos discursos, é como se o sujeito trouxesse
com ele enigmas pessoais a serem decifrados, como se o contexto judiciário e a
sociedade fossem neutros na produção da verdade.
A
participação da Psicologia nos procedimentos judiciais traz a observação direta
do que a criança diz e faz, ensina a compreendê-la, gerando a possibilidade de
reconhecimento das características da fase desenvolvimental em que se encontra
e as referências do contexto sociocultural em que vive. A exposição dos casos,
através do fluxograma, evidencia que o momento da inserção da Psicologia nos
procedimentos judiciais é favorecedor de uma leitura psicológica eficaz e de
uma perícia adequada que exerça, além de sua função de assessorar a decisão
judicial, a função de proteger a criança.
O
Delegado de polícia, ao apresentar um relatório de inquérito policial ao Poder
Judiciário, compõe uma narrativa baseada em diferentes informações
investigativas e também nas declarações da vítima-criança. Tal relatório,
recebido pelo Promotor de Justiça, passa a incorporar o discurso deste e, junto
a outras informações, concilia sua manifestação enviada ao Juiz de Direito, o
qual, por sua vez, registra todos os dados colhidos até então e reproduz alguns
dos procedimentos já desenvolvidos, como, por exemplo, a tomada de declarações
da vítima. Nessa dinâmica é que a representação social do abuso sexual infantil
se fortalece ou se transforma, o que pode ser verificado nas atuais discussões
sobre o atendimento não revitimizante às vítimas, nas quais os Tribunais de
Justiça do País se mostram envolvidos e comprometidos. Segundo aponta Moscovici
(2007, p.21), “(...) é durante o processo de transformação que os fenômenos são
mais facilmente percebidos”, conforme se observa nas pesquisas e produções
bibliográficas que apontam a valorização da escuta da criança em situação
judicial.
Conclusão
O
testemunho da criança vítima é um dos recursos judiciais utilizados na produção
de provas, em um processo crime, e é de relevância, visto que nos crimes
sexuais, na maioria dos casos, a vítima é também a única testemunha. A
tendência dos operadores do Direito em descrer do testemunho da criança está
vinculada não somente ao fato de esta desmentir o que dissera anteriormente,
mas também à representação social do abuso sexual infantil que permeia as
atuações dos profissionais. Tal fato foi constatado no caso 1, e nota-se que,
ao desmentir o fato, a vítima encontrou maior receptividade do que quando
manteve a acusação, seja na família, seja no meio jurídico.
As
experiências positivas em Comarcas menores comprovam que é possível a mudança
nos procedimentos judiciais sem ferir a lei e proteger a criança, como, por
exemplo, quando a denúncia chega à Promotoria de Justiça e é imediatamente
encaminhada à Seção de Psicologia para a escuta da criança, não havendo a
intervenção de outros profissionais, evitando, assim, a revitimização, como foi
explicitado no caso 2. A avaliação psicológica contida nos processos criminais
relativos ao abuso sexual infantil, além de assessorar uma decisão judicial,
tem por finalidade transformar a representação social do abuso sexual infantil.
Percebe-se, com isso, uma real possibilidade de mudança de paradigmas jurídicos
e da relação entre os operadores do Direito e a criança, pois a instituição
judiciária contém, em seus arquivos e documentos, registros de eventos reais.
Cada processo judicial, portanto, é um caso que contém uma história pessoal e
que necessita de uma intervenção institucional para a resolução de um conflito
de cuja conjuntura a Psicologia participa. Além de oferecer uma escuta
subjetiva à vítima, o psicólogo jurídico elabora um documento fundamentado em
técnicas e teorias que priorizam sua proteção integral.
Nas
últimas décadas, a violência sexual infantil ganhou visibilidade social, o que
é um resultado das mudanças ocorridas nos diferentes setores da sociedade.
“Esse crescente interesse pelo abuso sexual de crianças é, assim, sem dúvida, o
resultado de crianças com maior liberdade de expressão e também de adultos mais
dispostos a ouvi-las” (Almeida, 2003, p. 119).
Tal fato pode ser constatado nos tribunais do
País, diante do crescente número de inquéritos policiais e ações judiciais que
ingressam na Justiça por diferentes vias de acesso, o que vem confirmar a
importância da existência de atuações articuladas em rede e da interlocução das
instituições responsáveis pela proteção e defesa das crianças e adolescentes.
As
discussões sobre o atendimento não revitimizante à criança já são uma realidade
nos tribunais, e a imprescindibilidade da interação entre as Varas da Infância
e da Juventude e as Varas Criminais promove a celeridade da proteção à vítima e
o deslinde adequado da ação judicial. Ao redigir um documento ao Poder
Judiciário, o profissional perito deve ter em mente, além da preservação da
ética e do compromisso com a verdade, que está diante da oportunidade de
intervir nos procedimentos judiciais concernentes ao abuso sexual infantil, já
que propicia conhecimentos específicos que devem ser contextualizados à
realidade da criança atendida. Há uma constante construção do processo de
atendimento às vítimas no contexto judiciário, que se pode perceber pela
evolução não somente dos laudos psicológicos, mas também das determinações
judiciais fundamentadas nas peculiaridades da infância.
É
inegável que as práticas discursivas contidas nos processos judiciais produzem
conhecimentos e retratam as relações estabelecidas, não somente entre a
instituição judiciária e a infância, mas também entre os diferentes
profissionais. As transformações apontadas nesta pesquisa, atinentes aos
discursos tanto da Psicologia quanto do Direito, materializam as boas
perspectivas para mudanças no sistema de notificação do abuso sexual infantil,
que engloba igualmente o Sistema de Garantia de Direitos para a proteção das
vítimas. Certamente, os profissionais que atuam nos crimes sexuais contra
crianças se mostram mais motivados e atentos para as complexas características
que envolvem esse fenômeno, assim como para o reconhecimento da necessidade de
um programa de capacitação aos profissionais. Novas relações se estabelecem,
surgem novos olhares sobre a criança vítima e inicia-se uma nova etapa de
práticas responsáveis.
Há
de se observar que a prática discursiva dos operadores do Direito propicia
referências para novas práticas, sendo referendada nas apelações e
jurisprudências que apoiam outros julgamentos. Os Magistrados e Promotores, na
particularidade de suas funções, constroem significados que embasam as decisões
de outros profissionais, o que pressupõe o desenvolvimento de representações.
Moscovici, (2007) observa que todas as interações humanas que surjam entre duas
pessoas ou dois grupos caracterizam representações sociais, as quais se desenvolvem
através do processo de tornar familiar o que não é familiar. Assim, as
informações transitam entre os grupos por intermédio das representações dadas
aos eventos, às pessoas, aos acontecimentos, levando os indivíduos à busca de
significados para o que observam ou vivenciam. As apelações e as
jurisprudências materializam as práticas, exemplificando as diferentes formas
de atuação dos Magistrados julgadores de segunda instância bem como a
trajetória da produção da verdade jurídica.
A
avaliação psicológica é um instrumento eficaz e propulsor para modificações nos
procedimentos judiciais, incorporando à prática discursiva do contexto
judiciário críticas e esclarecimentos. Um parecer assertivo e explicativo
oferece fundamentos para os Magistrados e Promotores construírem suas
convicções, além da busca de novos recursos para a oitiva da vítima, com o
intuito de protegê-la, de validar seu testemunho e de promover sentenças
eficazes e justas. Mesmo que seja visível a evolução no comprometimento das
autoridades judiciárias em oferecer melhores condições de escuta à criança, a
revitimização ainda ocorre, por não haver uma regularidade nos sistemas de
notificação dos crimes sexuais. Esta pesquisa evidencia que a fragilidade da
palavra da criança está na maneira como é acolhida pelos adultos, desde a
revelação na família até a denúncia aos órgãos oficiais, demonstrando a
urgência de capacitação dos profissionais que atuam nos crimes de abuso sexual
infantil, para os quais a Psicologia, embora já tenha conquistado um espaço
efetivo e relevante, indubitavelmente ainda tem muitas contribuições a dar.
Referências
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R. K. (2005). Estudo de caso: planejamento e métodos. Porto Alegre: Bookm.
Escrito por: Consuelo Biacchi Eloy. Mestrado
em Psicologia pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho, Assis-SP,
Brasil (2007) Psicóloga Judiciária do Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo, Brasil. E-mail: consueloeloy@hotmail.com
Fonte:
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414-98932012000100017&script=sci_arttext.
Acesso em: 20/08/2014.
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