A violência representa
uma das maiores ameaças à humanidade, fazendo-se presente em todas as fases da
História da civilização humana. Pode-se dizer que a violência é parte
significativa do cotidiano, retratando a trajetória humana através dos tempos,
e que é intrínseca à existência da própria civilização. Como parte desse
fenômeno, e inserida num contexto histórico-social e com raízes culturais,
encontra-se a violência familiar (violência
conjugal, maus-tratos infantis, abuso sexual intrafamiliar etc.), que é um
fenômeno complexo e multifacetado, atingindo todas as classes sociais e todos
os níveis socioeducativos: apresenta diversas formas como, por exemplo,
maus-tratos físicos, psicológicos, abuso sexual, abandono e negligência na
educação e formação de crianças e adolescentes etc.
Destacamos, em especial,
o abuso sexual infantojuvenil
intrafamiliar como
uma das mais graves formas de violência, pois lesa os direitos fundamentais das
crianças e adolescentes, apresentando contornos de durabilidade e
habitualidade; trata-se, portanto, de um crime que deixa mais do que marcas
físicas, atingindo a própria alma das pequenas vítimas. Consiste na utilização
de uma criança ou adolescente para satisfação dos desejos sexuais de um adulto
que sobre ela tem uma relação de autoridade ou responsabilidade socioafetiva. A
origem do abuso sexual intrafamiliar transcende as fronteiras das culturas e
tem seus precedentes nos primórdios da civilização humana.
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Ilustração: Danton Soares |
“A violência sexual contra crianças e adolescentes, além de crime sexual, representa uma violação de direitos humanos universais. Quando ocorre no âmbito intrafamiliar, ultrapassa os limites e regras culturais, sociais, familiares e legais, pois se trata de um comportamento sórdido, degradante, repugnante e moralmente condenável, pois nega os princípios morais mais comezinhos formadores e informadores da célula familiar”.
O processo de violência sexual intrafamiliar
contra crianças e adolescentes pode ser entendido por vitimização primária, na
medida em que no âmbito procedimental-investigatório constata-se outro tipo de vitimização, em que
a violência é causada pelo sistema de justiça penal que viola outros direitos, vitimizando novamente a criança ou o adolescente.
Essa revitimização denomina-sevitimização secundária, que outra coisa não é senão a violência institucional do
sistema processual penal, fazendo das vítimas infantojuvenis novas
vítimas, agora do estigma processual-investigatório; a violência do sistema pode
dificultar (senão até inviabilizar) o processo de superação do trauma,
provocando ainda uma sensação de frustração, impotência e desamparo com o
sistema de controle social, aumentando o descrédito e a desconfiança nas
instituições de justiça criminal.
O abuso sexual intrafamiliar
é um dos temas mais sensíveis da realidade social e criminal nos tempos atuais,
principalmente porque se sabe que as consequências para as crianças e os
adolescentes abusados sexualmente são perenes, colocando em risco o equilíbrio
biopsicossocial para o resto de suas vidas. Um dos aspectos mais complexos,
tanto do ponto de vista jurídico como criminológico, é relativo à posição dessa
vítima criança/adolescente como testemunha no processo penal. É comum, tanto no
Brasil como no exterior, que crianças e adolescentes sejam chamadas a depor em
processos judiciais criminais para falar sobre situações de violência que sofreram. Essa fala das crianças e dos adolescentes no
momento da audiência integra o acervo probatório processual. Ocorre, porém,
que, em razão da forma tradicional de inquirição das
vítimas e testemunhas de crime sexual, quando crianças e adolescentes, pode
ampliar a violência por aquelas experimentadas, configurando o que denominamos
de vitimização secundária. Esse aspecto levou à
elaboração do Projeto de Lei n. 4.126/2004 que propõe a alteração do Estatuto
da Criança e do Adolescente, recomendando o modelo alternativo de inquirição conforme o projeto depoimento sem dano,
criado por operadores do direito de Porto Alegre e utilizado no 2º Juizado
da Infância e Juventude dessa capital.
O debate sobre o tema
está estabelecido. Deve refletir e discutir sobre a possibilidade de redução de danos às vítimas e
testemunhas no processo judicial, gerando novas perspectivas de
conhecimento teórico e prático; deve-se buscar uma discussão interdisciplinar
através da abordagem jurídica, psicológica e da assistência social,
entrecruzando os amplos domínios do social, da ciência, do jurídico, da ética e
do psicológico, oferecendo uma linguagem comum/especial indispensável para
trabalhar no campo da violência familiar. Na realidade, propõe-se diferentes
olhares sobre o mesmo tema, mas todos preocupados em preservar a dignidade humana como um
direito fundamental também
e especialmente aos infantojuvenis, aos quais, ao longo da vigência do atual
diploma legal (ECA) lhes tem sido sonegados os direitos e garantias processuais-criminais que a Constituição Federal
assegura a todos, inclusive aos piores delinquentes adultos. O
fundamental é que se perceba de uma vez por todas que crianças e adolescentes,
vítimas de violência sexual, intrafamiliar ou não, antes de objeto de investigação e demeio de prova, são,
acima de tudo, sujeitos de direitos, e que a sociedade, em nenhuma
hipótese, tem o direito de revitimizá-los, seja a pretexto da busca da mitológica verdade real, seja
para assegurar a mais ampla defesa do eventual acusado.
A prova, de culpa ou
de inocência, deve ser buscada por todo e qualquer outro meio moralmente
legítimo e não vedado em lei, desde que não se queira arrancá-la de quem já foi vitimizado pela
violência sexual sofrida. Não se pode esquecer de sua vulnerabilidade natural, que é somatizada pela
peculiar circunstância do trauma sofrido pela violência sexual de que fora
vítima. A ausência de outras provas ou a impossibilidade de produzi-las com a
idoneidade que exige uma decisão acusatória tampouco justificam que se revitimize os
infantojuvenis que não podem ser duplamente punidos pela incompetência ou
ineficiência do sistema repressivo penal. Em outros termos, que o Estado cure
suas chagas buscando aprimorar seu sistema investigativo penal, sem, contudo,
punir duplamente os infantojuvenis a quem a Constituição Federal assegura
proteção especial.
Enfim, o debate está
colocado, mas é fundamental que se encontre as respostas necessárias,
corajosamente, com posição firme em prol da cidadania, da dignidade da pessoa
humana e, sobretudo, da garantia do respeito aos direitos de crianças e
adolescentes, com a conscientização do Judiciário e do Ministério Público de
que, nesse campo, precisam modernizar sua filosofia, e conscientizar-se de que
não poderão continuar revitimizando crianças
e adolescentes sob o pretexto da busca da verdade real. Procurem-na, mas com
outros meios, e sem revitimizá-los com
equivocadas e prepotentes formas de inquiri-las.
Em outros termos, que a
proteção de menores vulneráveis, neste art. 217-A, não sirva para
que as autoridades repressivas (Ministério Público, Polícia e Poder Judiciário)
ampliem a revitimização secundária sobre os menores vítimas da violência
sexual, que ora se pretende reprimir. Espera-se que o Estado aprimore seus
meios investigativos/repressivos, com técnicas mais avançadas e material humano
mais bem preparado, oferecendo as condições necessárias a um combate mais
eficaz a esse tipo de criminalidade, sem revitimar quem já sofrera a primeira violência, que
a função preventiva não
foi capaz de evitar.
Texto escrito por Cezar Roberto Bitencourt, Doutor
em Direito Penal (Universidade de Sevilha, Espanha), Advogado e Professor
Universitário.
Fonte: http://atualidadesdodireito.com.br/cezarbitencourt/2011/11/03/a-busca-do-mito-da-verdade-real-justifica-a-vitimizacao-secundaria-de-vitima-vulneravel-da-violencia-sexual/.
Acesso em: 03/08/2014.
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