segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O "depoimento sem dano" e a "romeo and juliet law". Uma reflexão em face da atribuição da autoria de delitos sexuais por adolescentes e a nova redação do art. 217 do CP


Quando se trata de atribuição da autoria de um delito sexual contra criança ou adolescente (um estupro, por exemplo) e a amplíssima gama de condutas que sua nova tipologia encerra após a reforma do art. 213 do Código Penal, o sistema de justiça que naturalmente se inquieta, de uma forma que somente a Freud compete, ainda mais desconfortado fica.

Em se tratando de delito dessa natureza, cuja autoria é apontada na direção de um adolescente, a inquietação não é menor, e será ainda maior sendo a suposta vítima criança ou adolescente.

O desconforto resultante dessas situações pode ser dimensionado pelo extraordinário debate que cerca o tema do chamado “Depoimento sem Dano”, mecanismo alternativo de inquirição de crianças e adolescentes apontados como vítimas de delitos sexuais. José Antônio Daltoé Cezar, lista os três principais objetivos deste mecanismo: “Redução do dano durante a produção de provas em processos judiciais, nos quais a criança/adolescente é vítima ou testemunha; A garantia de direitos da criança/adolescente, proteção e prevenção de seus direitos, quando, ao ser ouvida em Juízo, sua palavra é valorizada, bem como sua inquirição respeita sua condição de pessoa em desenvolvimento; Melhoria na produção da prova produzida”(1). Na crítica que formula à ideia, destaca Alexandre Morais da Rosa(2), fazendo eco à pronunciamentos dos Conselhos Nacionais de Psicologia e de Serviço Social, que “há uma tensão recíproca entre ‘Direito’ e os respectivos técnicos (Psi e Serviço Social), muito por não se ter clara a questão das ‘fronteiras’ entre as abordagens, não obstante adotar-se a concepção de ‘heteronímia posicional’ proposta por Rui Cunha Martins, entre o lugar e a função do Direito e do saber técnico, com as suas intrincadas relações mal-ditas, bem-ditas, balbuciadas ou silenciadas”.

O tema está distante da pacificação, porém, cumpre consignar que a ideia é oferecer uma alternativa às muitas formas de escuta judicial de crianças (especialmente) vítimas de delitos sexuais, na tentativa de minimizar os inevitáveis danos decorrentes dessa inquirição ou reinquirição.

O que deve ser verificada é a necessidade ou não da formalização do procedimento, enquanto garantidor de direitos da vítima e também do acusado, dentro de uma ordem jurídica que assegura o devido processo penal, na lógica do garantismo penal.
Nem pela sacralização da vítima, nem pela demononização do acusado, mas sim pela busca da verdade e da justiça do caso concreto. O fato é que, com frequência, atribui-se a adolescentes a autoria de delitos dessa natureza vitimizando crianças ou outros adolescentes. Assim, vítima e acusado estão, muitas vezes, em situação de proximidade de grau de desenvolvimento físico, psíquico e emocional, a reclamar dos operadores do sistema de justiça uma ainda maior habilidade na condução desse processo que visa a apurar o fato. Não se ignora que os Estados Unidos da América do Norte introduziram o mundo, antes da Revolução Francesa, na moderna república, e a eles devemos quase todos os conceitos de liberdades individuais que estão expressas nas constituições do mundo. Pois os norte-americanos, não signatários da Convenção das Nações Unidas de Direitos da Criança, sempre lembrados pela carga “puritana” que permeia a ação de sua sociedade e sistema de justiça, em especial juvenil, trouxeram uma contribuição importante sobre o tema, que em nosso país pode ter operacionalidade, em especial diante da nova redação do art. 217 do Código Penal, que criminaliza o sexo com pessoa de menos de 14 anos. Nos Estados Unidos, em muitos estados daquele país, o sexo consensual entre menores de 18 anos se faz crime, especialmente se homossexual.

A Lei brasileira, após o advento da Lei 12.015/2009, criminaliza toda relação sexual com menor de 14 anos(3). Não há falar em violência presumida. Há o fato, há o crime; seja consensual, seja por violência ou ameaça. Pois os americanos, que punem o sexo consensual entre adolescentes, conceberam a chamada “Romeo and Juliet Law” (4).

Poderíamos traduzir, com vista à utilização de seus conceitos por aqui, como “Exceção de Romeu e Julieta”, inspirada nos célebres amantes juvenis imortalizados pelo gênio de Willian Shakespeare(5). Consiste em não reconhecer a presunção de violência quando a diferença de idade entre os protagonistas seja igual ou menor de cinco anos, considerando que ambos estariam no mesmo momento de descobertas da sexualidade(6). E consequentemente, em uma relação consentida, não haveria crime.

A rigor, a manutenção em 14 anos de idade para a chamada presunção de violência, apta a configurar crime ante a revogação do art. 224 e a nova redação do art. 217- A, todos do CP, reclama uma reflexão maior. Se a legislação brasileira reconhece a condição de adolescente desde os doze anos de idade; permite que viaje desacompanhado por todo território nacional, autoriza sua privação de liberdade na hipótese de autoria de um ato infracional, além de diversas outras prerrogativas, como o direito de ser ouvido e sua palavra considerada; exagera a norma a fixar em 14 e não em 12 anos a idade limite, ao menos sem estabelecer uma regra como a “Exceção de Romeu e Julieta”.

Em matéria de relacionamento sexual entre adolescentes, a nova regra do art. 217 exagera em face da realidade do País e de nossa adolescência, podendo criminalizar a conduta de muitos adolescentes e pré-adolescentes na descoberta de sua sexualidade.

Vejam a hipótese de um namoro entre adolescentes ou pré-adolescentes, entre um menino de 13 anos e uma menina de 11 anos, que resolvam realizar “manobras sexuais investigatórias”, para colocar a questão em termos jurídicos. O que fazer? E se forem condutas homossexuais, que acabam produzindo as reações mais estapafúrdias dos pais e as vezes da própria escola, chamando polícia, criando escândalo, criminalizando a descoberta da sexualidade?

A “Exceção de Romeu e Julieta”, inspirada na “Romeo and Juliet Law” dos norte-americanos, deve ser considerada, especialmente nas Varas da Infância e Juventude, na operacionalidade deste art. 217-A do Código Penal, até mesmo para que se evite algum suicídio.

NOTAS
(1) DALTOÉ CEZAR, José Antônio. Depoimento Sem Dano: uma alternativa para inquirir crianças e adolescentes nos processos judiciais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 62. Nesse procedimento a vítima é ouvida em ambiente distinto, sem os rigores de uma sala de audiência e conduzido por profissional da assistência social ou psicologia, a qual é o “instrumento” das perguntas formuladas desde outro ambiente, no qual estão o juiz e os demais atores da cena judiciária.

(2) O DEPOIMENTO SEM DANO E O ADVOGADO DO DIABO. A violência “branda” e o “Quadro Mental Paranóico” (Cordero) no Processo Penal. Joinvile: mimeo, 2009.

(3) Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caputcom alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. § 2o (VETADO). § 3o Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave: Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos. § 4o Se da conduta resulta morte: Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.

(4) As recentes mudanças na legislação americana que rege o sexo consensual entre menores de idade ou um adulto de 18 anos de idade e um menor de idade, reconheceram que essa intimidade não é o mesmo que abuso sexual. As novas leis, chamadas “Romeo and Juliet laws”, inspiradas em Shakespeare, tentam corrigir as sanções excessivamente duras e penas infligidas ao longo dos anos para tais situações. Em 2007, essas leis entraram em vigor em Connecticut, Flórida, Indiana e Texas.

(5) Romeu, de Shakespeare, poderia ser levado à Vara da Infância e Juventude, vez que teria 16 anos e Julieta 13, quando iniciou o affair.

(6) Na aplicação da chamada “Romeo and Juliet Law” a Suprema Corte do Estado da Geórgia (cuja Legislação criminalizava a conduta sexual consensual entre adolescentes) liberou da prisão Garnalow Wilson, de dezessete anos de idade, que estava preso pela prática de sexo oral com uma menina de 15 anos. A legislação do Estado criminalizava a conduta de práticas sexuais entre adolescentes, mas a Suprema Corte determinou que Wilson fosse liberado porque a nova regra desconfigurou a criminalização do sexo consensual entre adolescentes.


Escrito por: João Batista Costa Saraiva Juiz de Direito no RS. Especialista em Direito da Criança e do Adolescente professor da Escola Superior da Magistratura

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