Quando se trata de atribuição da autoria de um delito sexual
contra criança ou adolescente (um estupro, por exemplo) e a amplíssima gama de
condutas que sua nova tipologia encerra após a reforma do art. 213 do Código
Penal, o sistema de justiça que naturalmente se inquieta, de uma forma que
somente a Freud compete, ainda mais desconfortado fica.
Em se tratando de delito dessa natureza, cuja autoria é
apontada na direção de um adolescente, a inquietação não é menor, e será ainda
maior sendo a suposta vítima criança ou adolescente.
O desconforto resultante dessas situações pode ser
dimensionado pelo extraordinário debate que cerca o tema do chamado “Depoimento
sem Dano”, mecanismo alternativo de inquirição de crianças e adolescentes
apontados como vítimas de delitos sexuais. José Antônio Daltoé Cezar, lista os
três principais objetivos deste mecanismo: “Redução do dano durante a produção
de provas em processos judiciais, nos quais a criança/adolescente é vítima ou
testemunha; A garantia de direitos da criança/adolescente, proteção e prevenção
de seus direitos, quando, ao ser ouvida em Juízo, sua palavra é valorizada, bem
como sua inquirição respeita sua condição de pessoa em desenvolvimento; Melhoria
na produção da prova produzida”(1). Na crítica que formula à ideia, destaca
Alexandre Morais da Rosa(2), fazendo eco à pronunciamentos dos Conselhos
Nacionais de Psicologia e de Serviço Social, que “há uma tensão recíproca entre
‘Direito’ e os respectivos técnicos (Psi e Serviço Social), muito por não se
ter clara a questão das ‘fronteiras’ entre as abordagens, não obstante
adotar-se a concepção de ‘heteronímia posicional’ proposta por Rui Cunha
Martins, entre o lugar e a função do Direito e do saber técnico, com as suas
intrincadas relações mal-ditas, bem-ditas, balbuciadas ou silenciadas”.
O tema está distante da pacificação, porém, cumpre consignar
que a ideia é oferecer uma alternativa às muitas formas de escuta judicial de
crianças (especialmente) vítimas de delitos sexuais, na tentativa de minimizar
os inevitáveis danos decorrentes dessa inquirição ou reinquirição.
O que deve ser verificada é a necessidade ou não da
formalização do procedimento, enquanto garantidor de direitos da vítima e também
do acusado, dentro de uma ordem jurídica que assegura o devido processo penal,
na lógica do garantismo penal.
Nem pela sacralização da vítima, nem pela demononização do
acusado, mas sim pela busca da verdade e da justiça do caso concreto. O fato é
que, com frequência, atribui-se a adolescentes a autoria de delitos dessa
natureza vitimizando crianças ou outros adolescentes. Assim, vítima e acusado
estão, muitas vezes, em situação de proximidade de grau de desenvolvimento
físico, psíquico e emocional, a reclamar dos operadores do sistema de justiça
uma ainda maior habilidade na condução desse processo que visa a apurar o fato.
Não se ignora que os Estados Unidos da América do Norte introduziram o mundo,
antes da Revolução Francesa, na moderna república, e a eles devemos quase todos
os conceitos de liberdades individuais que estão expressas nas constituições do
mundo. Pois os norte-americanos, não signatários da Convenção das Nações Unidas
de Direitos da Criança, sempre lembrados pela carga “puritana” que permeia a
ação de sua sociedade e sistema de justiça, em especial juvenil, trouxeram uma
contribuição importante sobre o tema, que em nosso país pode ter
operacionalidade, em especial diante da nova redação do art. 217 do Código
Penal, que criminaliza o sexo com pessoa de menos de 14 anos. Nos Estados
Unidos, em muitos estados daquele país, o sexo consensual entre menores de 18
anos se faz crime, especialmente se homossexual.
A Lei brasileira, após o advento da Lei 12.015/2009,
criminaliza toda relação sexual com menor de 14 anos(3). Não há falar em
violência presumida. Há o fato, há o crime; seja consensual, seja por violência
ou ameaça. Pois os americanos, que punem o sexo consensual entre adolescentes,
conceberam a chamada “Romeo and Juliet Law” (4).
Poderíamos traduzir, com vista à utilização de seus conceitos
por aqui, como “Exceção de Romeu e Julieta”, inspirada nos célebres amantes
juvenis imortalizados pelo gênio de Willian Shakespeare(5). Consiste em não
reconhecer a presunção de violência quando a diferença de idade entre os
protagonistas seja igual ou menor de cinco anos, considerando que ambos
estariam no mesmo momento de descobertas da sexualidade(6). E consequentemente,
em uma relação consentida, não haveria crime.
A rigor, a manutenção em 14 anos de idade para a chamada
presunção de violência, apta a configurar crime ante a revogação do art. 224 e
a nova redação do art. 217- A, todos do CP, reclama uma reflexão maior. Se a
legislação brasileira reconhece a condição de adolescente desde os doze anos de
idade; permite que viaje desacompanhado por todo território nacional, autoriza
sua privação de liberdade na hipótese de autoria de um ato infracional, além de
diversas outras prerrogativas, como o direito de ser ouvido e sua palavra
considerada; exagera a norma a fixar em 14 e não em 12 anos a idade limite, ao
menos sem estabelecer uma regra como a “Exceção de Romeu e Julieta”.
Em matéria de relacionamento sexual entre adolescentes, a
nova regra do art. 217 exagera em face da realidade do País e de nossa adolescência,
podendo criminalizar a conduta de muitos adolescentes e pré-adolescentes na
descoberta de sua sexualidade.
Vejam a hipótese de um namoro entre adolescentes ou
pré-adolescentes, entre um menino de 13 anos e uma menina de 11 anos, que
resolvam realizar “manobras sexuais investigatórias”, para colocar a questão em
termos jurídicos. O que fazer? E se forem condutas homossexuais, que acabam
produzindo as reações mais estapafúrdias dos pais e as vezes da própria escola,
chamando polícia, criando escândalo, criminalizando a descoberta da
sexualidade?
A “Exceção de Romeu e Julieta”, inspirada na “Romeo and
Juliet Law” dos norte-americanos, deve ser considerada, especialmente nas Varas
da Infância e Juventude, na operacionalidade deste art. 217-A do Código Penal,
até mesmo para que se evite algum suicídio.
NOTAS
(1)
DALTOÉ CEZAR, José Antônio. Depoimento Sem Dano: uma alternativa para inquirir
crianças e adolescentes nos processos judiciais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007, p. 62. Nesse procedimento a vítima é ouvida em ambiente
distinto, sem os rigores de uma sala de audiência e conduzido por profissional
da assistência social ou psicologia, a qual é o “instrumento” das perguntas
formuladas desde outro ambiente, no qual estão o juiz e os demais atores da
cena judiciária.
(2) O
DEPOIMENTO SEM DANO E O ADVOGADO DO DIABO. A violência “branda” e o “Quadro
Mental Paranóico” (Cordero) no Processo Penal. Joinvile: mimeo, 2009.
(3) Art.
217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14
(catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.§ 1o Incorre na
mesma pena quem pratica as ações descritas no caputcom alguém que, por
enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a
prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer
resistência. § 2o (VETADO). § 3o Se da conduta resulta lesão corporal de
natureza grave: Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos. § 4o Se da
conduta resulta morte: Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
(4) As
recentes mudanças na legislação americana que rege o sexo consensual entre
menores de idade ou um adulto de 18 anos de idade e um menor de idade,
reconheceram que essa intimidade não é o mesmo que abuso sexual. As novas leis,
chamadas “Romeo and Juliet laws”, inspiradas em Shakespeare, tentam corrigir as
sanções excessivamente duras e penas infligidas ao longo dos anos para tais
situações. Em 2007, essas leis entraram em vigor em Connecticut, Flórida,
Indiana e Texas.
(5)
Romeu, de Shakespeare, poderia ser levado à Vara da Infância e Juventude, vez
que teria 16 anos e Julieta 13, quando iniciou o affair.
(6) Na
aplicação da chamada “Romeo and Juliet Law” a Suprema Corte do Estado da
Geórgia (cuja Legislação criminalizava a conduta sexual consensual entre
adolescentes) liberou da prisão Garnalow Wilson, de dezessete anos de idade,
que estava preso pela prática de sexo oral com uma menina de 15 anos. A
legislação do Estado criminalizava a conduta de práticas sexuais entre
adolescentes, mas a Suprema Corte determinou que Wilson fosse liberado porque a
nova regra desconfigurou a criminalização do sexo consensual entre
adolescentes.
Escrito por:
João Batista Costa Saraiva Juiz de Direito no RS. Especialista em Direito da
Criança e do Adolescente professor da Escola Superior da Magistratura
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