quinta-feira, 21 de agosto de 2014

A face “procedimental” do depoimento sem dano

projeto do Depoimento sem Dano nasceu em maio de 2003 perante a 2ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre com o propósito de colher a oitiva das vítimas de abuso sexual, crianças e adolescentes, retirando-as do ambiente formal da sala de audiências e transferindo-as para uma sala projetada especialmente para que seja a prova oral obtida “de forma mais tranqüila e profissional, em ambiente mais receptivo, com a intervenção de técnicos previamente preparados para tal tarefa […]”. Com efeito, dentre os alegados objetivos almejados pelo projeto estão: (I) a redução do dano durante a produção de provas em processos judiciais em que se têm crianças e adolescentes como vítimas ou testemunhas e; (II) a garantia dos direitos da criança e do adolescente, proteção e prevenção de seus direitos, bem como a garantia ao respeito de sua condição de pessoa em desenvolvimento.(1)

A partir de 2006, o Governo Federal, por meio da Secretaria Especial de Direitos Humanos, passou a apoiar o projeto e a disseminar esta prática por outros Estados da Federação. Junto ao Congresso Nacional existe um Projeto de Lei (PL n. 7.524/06), de autoria da então Deputada Federal Maria do Rosário (PT-RS), que tem por objetivo lhe conferir legitimidade como um mecanismo jurídico que garanta proteção à criança e ao adolescente, tudo através de uma proposta que almeja a alteração do ECA, do Código Penal e do Código de Processo Penal.  Da mesma forma, o PL 156/09, que propõe a substituição integral do texto do Código de Processo Penal, também inova sob esse aspecto e destina, dentro do Título que regulamenta a produção probatória no processo, uma Seção especial relativa à inquirição de crianças e adolescentes.

O projeto reformista prevê – para salvaguardar a integridade física, psíquica e emocional do depoente (criança ou adolescente vítima de delitos) e para evitar sua revitimização, ocasionada por sucessivas inquirições sobre o mesmo fato, nos âmbitos penal, cível e administrativo – a realização de um procedimento especial de inquirição para crianças e adolescentes (art. 193 do PL 156/09) em que eles deverão ficar em um recinto diverso da sala de audiências, em ambiente preparado para a finalidade proposta (art. 194, I, do PL 156/09), onde, acompanhada por profissional especializado e designado pelo juiz (art. 194, II, do PL 156/09), serão encaminhados a eles os questionamentos formulados pelas partes (art. 194, III, do PL 156/09) e previamente “filtrados” pelo magistrado presidente da audiência (art. 194, IV, do PL 156/09). Ao receber esses questionamentos, o profissional especializado “deverá simplificar a linguagem e os termos da pergunta que lhe foi transmitida” pelo juiz, questionando a criança ou o adolescente sobre o fato apreciado (art. 194, V, do PL 156/09).

Depoimento sem Dano, tal qual previsto no PL 156/09, aparenta estar inserido no procedimento ordinário adotado pela proposta de alteração processual penal, e existe a possibilidade de que, em determinados casos, tal medida se dê mediante a produção antecipada de provas, conforme disposição do art. 195 do PL 156/09. O deferimento dessa forma de oitiva ainda em fase de investigação fica por conta da observância, pelo juiz de garantias, de comprovação de “risco de redução de capacidade de reprodução dos fatos pelo depoente”, o que deverá ser decidido fundamentadamente e com base nos elementos até então colhidos na investigação preliminar.

Em nossa sistemática jurídico-processual atual, a aplicação do Depoimento sem Dano ocorre, de forma travestida, exclusivamente através de utilização das denominadas medidas cautelares de produção antecipada de provas, as quais, nesses casos específicos, de cautelar não têm nada. Em geral, tais medidas podem ser empregadas sempre que haja fundado – e fundamentado – risco de perecimento e perda irreparável de elementos colhidos na investigação, e tal artifício está sendo utilizado (e banalizado) nos processos penais que envolvem vítimas crianças ou adolescentes, de regra, ao arrepio da lei. Um incidente desta natureza só pode ser admitido em casos verdadeiramente emblemáticos, em que fique demonstrada a probabilidade de ser inviável a posterior repetição na fase processual da prova, o que não autoriza sua utilização para a oitiva de crianças e adolescentes vítimas de delitos sem que haja cumprimento dos procedimentos determinados legalmente.(2)

Um dos argumentos apresentados pelos defensores da prática do Depoimento sem Dano é o de que a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança assegura à criança “a oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que afete a mesma, quer diretamente quer por intermédio de um representante ou órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais da legislação nacional” (art. 12.2). Ou seja, a própria norma internacional indica que a oitiva das crianças e adolescentes em processo judicial deve ser oportunizada em estrita observância ao devido processo legal de cada país signatário.

No Brasil, entretanto, ainda não se encontra em vigor nenhum procedimento específico em seu Código de Processo Penal, ou até mesmo no ECA, que considere as condições peculiares para a oitiva, em audiência, de crianças ou adolescentes vítimas de delitos. Para tentar fazer valer o tratado internacional, buscaram-se alternativas que impõem, a fórceps, a “sistemática” do Depoimento sem Dano por intermédio do incidente de produção antecipada de provas, adotado como uma forma de subverter o sistema processual penal, além de ferir mortalmente o princípio da legalidade e o direito fundamental do acusado ao procedimento.

Conforme bem observam Morais da Rosa Silveira Filho, “a legitimidade na imposição de atos cogentes, decorrentes do poder de império, com consequências no âmbito dos jurisdicionados e, no caso do Processo Penal, dos acusados, precisa atender aos princípios e regras previstos no ordenamento jurídico de forma taxativa”.(3) Nesta mesma esteira de raciocínio, Scarance Fernandes esclarece que o estabelecimento de incidentes que ocasionem pequenos ou grandes desvios na rota preestabelecida nos processos, “embora constituam individualidades, devem ser produzidas de acordo com os modelos estabelecidos na legislação”.(4)

Conforme a teoria dos direitos fundamentais de Alexy, existem duas ordens de direitos fundamentais ao procedimento penal: os que se dirigem ao legislador e aqueles voltados ao juiz. Neste caso, relacionado à aplicação das normas, trata-se do direito fundamental a que sejam observadas, concretamente, as normas procedimentais penais estabelecidas pela legislação ordinária, bem como a necessária interpretação dessas normas de acordo com os direitos fundamentais procedimentais estabelecidos constitucionalmente.(5)

Nossa sistemática processual impõe limites à atividade probatória, admitindo-se, salvo raras exceções, somente a admissão das provas previstas em nosso Código de Processo Penal. E o Depoimento sem Dano definitivamente não se encontra nesse limitado rol.

A prova não contemplada no ordenamento processual é conhecida como prova inominada, e admite-se sua existência desde que atente aos limites constitucionais e processuais da prova. Entretanto, jamais pode ser acolhida quando decorrente de uma variação ilícita de outro ato legalmente estabelecido na lei processual penal – justamente o caso do Depoimento sem Dano – burlando as garantias constitucionais e legais previamente estabelecidas.(6)

Em linhas de conclusão, é público e notório que o Depoimento sem Dano ainda não passa de um Projeto-Lei em tramitação no Congresso Nacional, e que sua aplicabilidade ocorre de forma travestida, através de uma pretensa medida cautelar de produção antecipada de provas, que de cautelar não possui nada. Por tratar-se, ainda, de um simples Projeto de Lei, fica flagrantemente escancarado o desrespeito do procedimento utilizado no que guarda relação com o princípio da legalidade, e sua atual aplicação reclama as formalidades de “um processo legislativo de elaboração da lei previamente definido e regular, […], necessariamente enquadrados nas preceituações constitucionais […]”.(7)


NOTAS
(1)  http://www.amb.com.br/docs/noticias/2008/projeto_DSD.pdf, acesso em 16.04.2011.

(2)  […] de regra, a posição é a de que a criança ‘foi’ vítima da violência e que o meio de ‘sugar’ os significantes necessários à condenação precisam ser extraídos, de maneira ‘branda’, ou mais propriamente, na função de um ‘micro poder’ subliminar e sedutor de que nos fala Foucault. A postura infla-se de um inquisitorialismo cego pelo qual se busca, em nome do ‘Bem’, as provas do que se crê como existentes, dado que os lugares, desde antes, estão ocupados: ‘vítima e agressor’. O resultado é um jogo de cartas marcadas em que o processo como procedimento em contraditório se perde em relações performáticas de profissionais que se arvoram em ‘intérpretes/tradutores’ do discurso infantil” (MORAIS DA ROSA, Alexandre. O depoimento sem dano e o advogado do diabo: a violência “branda” e o “quadro mental paranóico” (Cordero) no Processo Penal. In: POTTER, Luciane BitencourtDepoimento sem Dano: Uma Política Criminal de Redução de Danos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010).

(3) MORAIS DA ROSA, Alexandre; SILVEIRA FILHO, Sylvio Lourenço daPara um Processo Penal Democrático: crítica à metástase do sistema de controle social. 2ª tiragem. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 71.

(4) SCARANCE FERNANDES, AntônioTeoria Geral do Procedimento e o Procedimento no Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 63-64.

(5) ALEXY, RobertTeoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2002.

(6) LOPES JÚNIOR, AuryDireito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. v. 1, p. 525.

(7) TUCCI, Rogério LauriaDireitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro. 3ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 56-57.


Autor: Rodrigo Oliveira de Camargo 
Advogado/RS, mestre em Ciências Criminais/PUC-RS e membro do Instituto Lia Pires.

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