O projeto do Depoimento
sem Dano nasceu em maio de 2003 perante a 2ª Vara da Infância e da
Juventude de Porto Alegre com o propósito de colher a oitiva das vítimas de
abuso sexual, crianças e adolescentes, retirando-as do ambiente formal da sala
de audiências e transferindo-as para uma sala projetada especialmente para que
seja a prova oral obtida “de forma mais tranqüila e profissional, em
ambiente mais receptivo, com a intervenção de técnicos previamente preparados
para tal tarefa […]”. Com efeito, dentre os alegados objetivos
almejados pelo projeto estão: (I) a redução do dano durante a
produção de provas em processos judiciais em que se têm crianças e adolescentes
como vítimas ou testemunhas e; (II) a garantia dos direitos da criança e do
adolescente, proteção e prevenção de seus direitos, bem como a garantia ao
respeito de sua condição de pessoa em desenvolvimento.(1)
A partir de 2006, o Governo
Federal, por meio da Secretaria Especial de Direitos Humanos, passou a apoiar o projeto e
a disseminar esta prática por outros Estados da Federação. Junto ao Congresso
Nacional existe um Projeto de Lei (PL n. 7.524/06), de autoria da então
Deputada Federal Maria do Rosário (PT-RS), que tem por objetivo lhe conferir
legitimidade como um mecanismo jurídico que garanta proteção à criança e ao
adolescente, tudo através de uma proposta que almeja a
alteração do ECA, do Código Penal e do Código de Processo Penal. Da
mesma forma, o PL 156/09, que propõe a substituição integral do texto do Código
de Processo Penal, também inova sob esse aspecto e destina, dentro do Título
que regulamenta a produção probatória no processo, uma Seção especial relativa
à inquirição de crianças e adolescentes.
O projeto reformista prevê – para
salvaguardar a integridade física, psíquica e emocional do depoente (criança ou
adolescente vítima de delitos) e para evitar sua revitimização, ocasionada por
sucessivas inquirições sobre o mesmo fato, nos âmbitos penal, cível e
administrativo – a realização de um procedimento especial de inquirição para
crianças e adolescentes (art. 193 do PL 156/09) em que eles deverão ficar em um
recinto diverso da sala de audiências, em ambiente preparado para a finalidade
proposta (art. 194, I, do PL 156/09), onde, acompanhada por profissional
especializado e designado pelo juiz (art. 194, II, do PL 156/09), serão
encaminhados a eles os questionamentos formulados pelas partes (art. 194, III,
do PL 156/09) e previamente “filtrados” pelo magistrado presidente da audiência
(art. 194, IV, do PL 156/09). Ao receber esses questionamentos, o profissional
especializado “deverá simplificar a linguagem e os termos da pergunta que
lhe foi transmitida” pelo juiz, questionando a criança ou o adolescente
sobre o fato apreciado (art. 194, V, do PL 156/09).
O Depoimento sem Dano,
tal qual previsto no PL 156/09, aparenta estar inserido no procedimento
ordinário adotado pela proposta de alteração processual penal, e existe a
possibilidade de que, em determinados casos, tal medida se dê mediante a
produção antecipada de provas, conforme disposição do art. 195 do PL 156/09. O
deferimento dessa forma de oitiva ainda em fase de investigação fica por conta
da observância, pelo juiz de garantias, de comprovação de “risco
de redução de capacidade de reprodução dos fatos pelo depoente”, o que
deverá ser decidido fundamentadamente e com base nos elementos até então
colhidos na investigação preliminar.
Em nossa sistemática
jurídico-processual atual, a aplicação do Depoimento sem Dano ocorre,
de forma travestida, exclusivamente através de utilização das denominadas
medidas cautelares de produção antecipada de provas, as quais, nesses casos
específicos, de cautelar não têm nada. Em geral, tais medidas podem ser
empregadas sempre que haja fundado – e fundamentado – risco de perecimento e
perda irreparável de elementos colhidos na investigação, e tal artifício está
sendo utilizado (e banalizado) nos processos penais que envolvem vítimas
crianças ou adolescentes, de regra, ao arrepio da lei. Um incidente desta
natureza só pode ser admitido em casos verdadeiramente emblemáticos, em que fique
demonstrada a probabilidade de ser inviável a posterior repetição na fase
processual da prova, o que não autoriza sua utilização para a oitiva de
crianças e adolescentes vítimas de delitos sem que haja cumprimento dos
procedimentos determinados legalmente.(2)
Um dos argumentos apresentados
pelos defensores da prática do Depoimento sem Dano é o de que
a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança assegura à criança “a
oportunidade de ser ouvida em todo processo judicial ou administrativo que
afete a mesma, quer diretamente quer por intermédio de um representante ou
órgão apropriado, em conformidade com as regras processuais da legislação
nacional” (art. 12.2). Ou seja, a própria norma internacional indica que a
oitiva das crianças e adolescentes em processo judicial deve ser oportunizada
em estrita observância ao devido processo legal de cada país signatário.
No Brasil, entretanto, ainda não
se encontra em vigor nenhum procedimento específico em seu Código de Processo
Penal, ou até mesmo no ECA, que considere as condições peculiares para a
oitiva, em audiência, de crianças ou adolescentes vítimas de delitos. Para
tentar fazer valer o tratado internacional, buscaram-se alternativas que
impõem, a fórceps, a “sistemática” do Depoimento sem Dano por
intermédio do incidente de produção antecipada de provas, adotado como uma
forma de subverter o sistema processual penal, além de ferir mortalmente o
princípio da legalidade e o direito fundamental do acusado ao procedimento.
Conforme bem observam Morais
da Rosa e Silveira Filho, “a legitimidade na imposição
de atos cogentes, decorrentes do poder de império, com consequências no âmbito
dos jurisdicionados e, no caso do Processo Penal, dos acusados, precisa atender
aos princípios e regras previstos no
ordenamento jurídico de forma taxativa”.(3) Nesta mesma esteira de
raciocínio, Scarance Fernandes esclarece que o estabelecimento
de incidentes que ocasionem pequenos ou grandes desvios na rota preestabelecida
nos processos, “embora constituam individualidades, devem ser produzidas de
acordo com os modelos estabelecidos na legislação”.(4)
Conforme a teoria dos direitos
fundamentais de Alexy, existem duas ordens de direitos
fundamentais ao procedimento penal: os que se dirigem ao legislador e aqueles
voltados ao juiz. Neste caso, relacionado à aplicação das normas, trata-se do
direito fundamental a que sejam observadas, concretamente, as normas
procedimentais penais estabelecidas pela legislação ordinária, bem como a
necessária interpretação dessas normas de acordo com os direitos fundamentais
procedimentais estabelecidos constitucionalmente.(5)
Nossa sistemática processual
impõe limites à atividade probatória, admitindo-se, salvo raras exceções,
somente a admissão das provas previstas em nosso Código de Processo Penal. E o Depoimento
sem Dano definitivamente não se encontra nesse limitado rol.
A prova não contemplada no
ordenamento processual é conhecida como prova inominada, e
admite-se sua existência desde que atente aos limites constitucionais e
processuais da prova. Entretanto, jamais pode ser acolhida quando decorrente de
uma variação ilícita de outro ato legalmente estabelecido na lei processual
penal – justamente o caso do Depoimento sem Dano – burlando as
garantias constitucionais e legais previamente estabelecidas.(6)
Em linhas de conclusão, é público
e notório que o Depoimento sem Dano ainda não passa de um
Projeto-Lei em tramitação no Congresso Nacional, e que sua aplicabilidade
ocorre de forma travestida, através de uma pretensa medida cautelar de produção
antecipada de provas, que de cautelar não possui nada. Por tratar-se, ainda, de
um simples Projeto de Lei, fica flagrantemente escancarado o desrespeito do
procedimento utilizado no que guarda relação com o princípio da legalidade, e sua
atual aplicação reclama as formalidades de “um processo legislativo de
elaboração da lei previamente definido e regular, […], necessariamente
enquadrados nas preceituações constitucionais […]”.(7)
NOTAS
(1) http://www.amb.com.br/docs/noticias/2008/projeto_DSD.pdf,
acesso em 16.04.2011.
(2) “[…] de regra, a posição é a de que a criança
‘foi’ vítima da violência e que o meio de ‘sugar’ os significantes necessários
à condenação precisam ser extraídos, de maneira ‘branda’, ou mais propriamente,
na função de um ‘micro poder’ subliminar e sedutor de que nos fala Foucault. A
postura infla-se de um inquisitorialismo cego pelo qual se busca, em nome do
‘Bem’, as provas do que se crê como existentes, dado que os lugares, desde
antes, estão ocupados: ‘vítima e agressor’. O resultado é um jogo de cartas
marcadas em que o processo como procedimento em contraditório se perde em
relações performáticas de profissionais que se arvoram em
‘intérpretes/tradutores’ do discurso infantil” (MORAIS DA ROSA,
Alexandre. O depoimento sem dano e o advogado do diabo: a violência
“branda” e o “quadro mental paranóico” (Cordero) no Processo Penal. In: POTTER,
Luciane Bitencourt. Depoimento sem Dano: Uma Política Criminal de
Redução de Danos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010).
(3) MORAIS DA ROSA, Alexandre; SILVEIRA FILHO, Sylvio
Lourenço da. Para um Processo Penal Democrático:
crítica à metástase do sistema de controle social. 2ª tiragem. Rio de
Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, p. 71.
(4) SCARANCE FERNANDES, Antônio. Teoria
Geral do Procedimento e o Procedimento no Processo Penal. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 63-64.
(5) ALEXY, Robert. Teoría de
los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 2002.
(6) LOPES JÚNIOR, Aury. Direito
Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 3ª ed. Rio de Janeiro:
Editora Lumen Juris, 2008. v. 1, p. 525.
(7) TUCCI, Rogério Lauria. Direitos
e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro. 3ª ed. rev. atual. e
ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 56-57.
Autor: Rodrigo Oliveira de Camargo
Advogado/RS, mestre em Ciências Criminais/PUC-RS e membro do Instituto Lia
Pires.
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