Depoimento especial ou perícia por equipe técnica
interdisciplinar: Na busca da melhor alternativa para o atendimento de crianças e adolescentes
vítimas de violência.
O atendimento de crianças e
adolescentes vítimas de violência, abuso ou exploração sexual, sem dúvida,
representa uma das tarefas mais complexas e delicadas dentre todas as
desempenhadas pelos diversos integrantes do "Sistema de Garantias dos
Direitos da Criança e do Adolescente", que precisam ter o
máximo de cautela para, de um lado, com a urgência devida, colher os elementos
necessários à responsabilização dos agentes e, de outro, evitar que as vítimas
tenham violados seus direitos fundamentais à inviolabilidade da integridade física
e psíquica, à intimidade, à privacidade ou sejam expostas a situações
constrangedoras e/ou potencialmente traumáticas.
Tendo em vista que tais
ocorrências demandam a intervenção das mais diversas autoridades, órgãos e
equipamentos públicos, mais do que em qualquer outra situação se faz necessária
a integração operacional entre os mesmos, que
deverão articular ações e efetuar um "planejamento estratégico" acerca das intervenções
a serem realizadas, como parte de uma política pública específica,
de cunho intersetorial, elaborada e executada por meio de profissionais qualificados.
E isto é um enorme desafio a ser
enfrentado, pois demanda a adequada compreensão acerca do papel de cada um dos
diversos "atores" que devem intervir no caso, que precisam
"somar esforços" na busca da solução que melhor atenda aos interesses
das vítimas (no que diz respeito à sua proteção e amparo, que devem ser também estendidos às suas
famílias) e da própria sociedade (através da rápida e eficaz responsabilização dos agentes, de modo que não
continuem a praticar atos semelhantes).
Em muitos
casos, no entanto, percebe-se uma certa "confusão de papéis" entre
alguns desses "atores", que apesar de estarem imbuídos da melhor das
intenções, ora acabam invadindo a esfera de atribuições de outros, ora deixam
de exercer, ao menos em sua plenitude e/ou da forma como deveriam, as
atribuições que lhes são próprias, em ambos os casos com resultados desastrosos
para a correta apuração dos fatos e para a consequente proteção às vítimas e
responsabilização dos agentes.
Um dos
exemplos clássicos diz respeito ao aparente "conflito de atribuições"
entre o Conselho Tutelar e a Polícia Judiciária, quando da notícia de
violência/abuso/exploração sexual de crianças e adolescentes.
Nestes casos, é muito comum que o
Conselho Tutelar passe a "investigar" a ocorrência em tese criminosa,
exercendo o papel de verdadeiro "órgão de segurança pública", de
forma absolutamente indevida [nota 1] e
sem qualquer articulação de ações com a Polícia Judiciária, que assim acaba
deixando de intervir em muitos casos ou tem seu trabalho comprometido, pois uma
vez "alertados" pela atuação imprópria (e desprovida de qualquer
técnica investigativa) do Conselho Tutelar, os agentes/acusados acabam
destruindo provas, intimidando vítimas e testemunhas ou mesmo se evadindo,
permanecendo livres para prática de novos crimes.
Evidente que não se está aqui
afirmando que o Conselho Tutelar não deva intervir nos casos suspeitos de
violência/abuso/exploração sexual de crianças e adolescentes, mas é preciso que
o faça de forma articulada com a Polícia
Judiciária (sem prejuízo da intervenção de outros órgãos, programas e serviços,
como melhor veremos adiante), na perspectiva de proteger
a vítima, e não de "investigar" o crime em tese praticado, tarefa que é de
responsabilidade daquela.
O problema, no entanto, não está
apenas na falta de clareza acerca das atribuições de cada um dos agentes e autoridades
e que devem intervir no caso, mas também na forma como tais
intervenções são realizadas, haja vista que, infelizmente, oimproviso e a falta de planejamento e de
integração operacional entre os órgãos se segurança pública e
os programas e serviços destinados à proteção e ao atendimento das vítimas e
suas famílias, assim como a falta de profissionais
qualificados para realização das intervenções que se fazem
necessárias, ainda são a regra na imensa maioria dos municípios.
Como resultado, crianças e
adolescentes vítimas de violência, abuso e/ou exploração sexual acabam sendo
atendidas por pessoas que, embora bem intencionadas, não possuem o devido preparo para efetuar as abordagens devidas,
acabando assim por submetê-las, ainda que involuntariamente, à chamada
"revitimização", fazendo com que tenham de relatar (e assim reviver)
os traumas sofridos, em circunstâncias absolutamente desfavoráveis e
constrangedoras.
Pior.
Como não
há, em regra, qualquer ação integrada entre os diversos profissionais e autoridades
encarregadas do atendimento do caso, as vítimas acabam sendo ouvidas em
momentos distintos pelo Conselho Tutelar, autoridade policial, Ministério
Público e Poder Judiciário (e neste caso, não raro em mais de uma ocasião),
tendo de, em cada uma destas oportunidades, relatar novamente tudo o que
sofreram, fazendo com que as "feridas" abertas não cicatrizem jamais.
Desnecessário dizer que as
sucessivas tomadas de declarações, em muitos casos realizadas com um
considerável lapso temporal entre elas, sem que os agentes encarregados tenham
recebido qualquer qualificação funcional para
exercer tal incumbência, tanto traz evidentes prejuízos às vítimas quanto à
própria investigação adequada (e célere) dos fatos, com trágicos resultados.
Diante de
tal constatação, e reconhecendo seu próprio despreparo para o atendimento de
crianças e adolescentes vítimas de violência/abuso/ exploração sexual, algumas
autoridades com atuação na área passaram a propor alternativas às abordagens
usualmente realizadas, que deveriam ser efetuadas a partir da intervenção de
profissionais das áreas da psicologia e/ou serviço social, em um ambiente
diferenciado, de modo que a vítima não tivesse de ficar frente a frente com o
acusado e seu defensor, em condições mais favoráveis que as até então
oferecidas.
Esta nova sistemática passou a
ser conhecida como "depoimento sem dano" [nota 2],
sendo mais tarde denominada de "depoimento especial", tendo sido
implementada em algumas Delegacias e Varas Criminais especializadas no
atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violência em diversas regiões
do País [nota 3],
que criaram "salas especiais" onde as declarações passaram a ser
colhidas por intermédio de um ou mais técnicos, que serviam de interlocutores
para as perguntas que as autoridades e partes formulavam às vítimas por ocasião
de uma audiência especialmente designada para este fim.
A técnica encontra respaldo na
Lei (valendo citar os arts. 5º, 15 a 18, e 100, par. único, incisos I, V, XI e
XII, da Lei nº 8.069/90) e na Constituição Federal (cf. art. 227, caput, de nossa Carta Magna), bem como no disposto nos
arts. 12, 19, 34 e 39, da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança, de
1989 (bem como no sempre invocado princípio elementar da
dignidade da pessoa humana), tendo sido a matéria recentemente
regulamentada pela Resolução nº 33/2010, do Conselho Nacional de Justiça, e
objeto do Projeto de Lei nº 4.126/04, que se encontra em tramitação no Senado
Federal.
Embora sem dúvida preferível à
simples coleta das declarações da vítima diretamente pela autoridade (e
eventualmente por outras pessoas), tal sistemática ainda não se mostra
adequada, haja vista que não evita a exposição da criança ou adolescente ao
ambiente pouco acolhedor de uma Delegacia de Polícia ou Fórum (o simples fato
de a vítima saber de antemão que terá de comparecer em tais locais para ser
"ouvida" - ainda que de forma indireta - é sem dúvida fonte de
angústia e constrangimento), não impede, quando realizada de por iniciativa
isolada de apenas uma das autoridades
encarregadas de intervir no caso, os "danos" resultantes das
abordagens indevidas efetuadas pelas demais e não permite, por ser realizada
num único ato, que o(s) técnico(s) possa(m) estabelecer com a vítima uma
relação de confiança capaz de servir de base às indagações subsequentes, não
lhe(s) proporcionando a liberdade necessária para que possa(m) exercer
plenamente suas atribuições.
É também
preciso considerar que a simples intervenção de um ou mais técnicos, por si só,
não é garantia de que a vítima não será exposta a situações constrangedoras,
pois nem todos os profissionais possuem a qualificação necessária para
realização de tais abordagens.
Com
efeito, tamanha é a complexidade da matéria, que poucos são os profissionais da
psicologia e serviço social (sem falar naqueles graduados em outras áreas) que
estão, de fato, preparados para atuar em casos semelhantes, sendo desnecessário
dizer que em tais casos não basta "interrogar" a criança/adolescente
vítima e/ou procurar vestígios "físicos" da violência/abuso sofrido,
pois boa parte dos crimes desta natureza não deixam marcas visíveis (embora
possam deixar profundos traumas psicológicos, difíceis de detectar e tratar sem
uma análise aprofundada da situação).
A
sistemática atualmente instituída para coleta de informações junto a crianças e
adolescentes vítimas de violência/abuso/exploração sexual ainda
"peca" por transmitir a impressão (logicamente equivocada) que a
coleta do "depoimento" (ou melhor, das "declarações") da
vítima perante a autoridade policial e posteriormente perante a autoridade
judiciária, em audiência (ainda que num formato ligeiramente diverso do ato
"tradicional"), seria "imprescindível" à apuração dos fatos
e/ou à responsabilização dos agentes.
É
possível, no entanto, uma abordagem completamente diferenciada (afinal, todos
os meios - lícitos - são admissíveis para produção de provas), que dispensa a
realização de uma "audiência" e/ou a coleta do "depoimento"
(ou "declarações") da vítima e que, se corretamente executada,
permite a realização das intervenções necessárias, tanto no sentido da proteção
da vítima quanto da responsabilização do agente, com a celeridade devida e sem
a exposição daquela a situações constrangedoras e/ou potencialmente
traumáticas.
Trata-se
de uma proposta alternativa, que coloca a coleta das informações sobre o
ocorrido num contexto mais amplo de atendimento da vítima e sua família,
procurando corrigir algumas das falhas que o modelo do "depoimento sem
dano/especial", ainda apresenta.
Primeiramente, de nada adianta
falar em qualquer "técnica" envolvendo a coleta de informações junto
à vítima sem falar em profissionais qualificados para
realização das abordagens necessárias. E quando se fala em "profissionais", como melhor veremos adiante, é
fundamental que estes sejam formados em áreas diversas (como psicologia, serviço
social e pedagogia), pois o atendimento da vítima e a análise do caso sob a
ótica interdisciplinar é verdadeiramente imprescindível.
A
contratação e qualificação de tais profissionais é um grande desafio, haja
vista que a maioria dos municípios e mesmo das comarcas em todo o Brasil não
dispõem de verdadeiras equipes técnicas especializadas na realização de
semelhantes abordagens, e poucos são os cursos ou programas de qualificação
para tanto existentes.
Trata-se, no entanto, de uma
deficiência estrutural que precisa ser urgentemente superada, pois no mundo de
hoje não há mais espaço para o "amadorismo" e para o
"improviso", que são absolutamente incompatíveis com
os princípios da proteção integral e da prioridade absoluta à criança
e ao adolescente que norteiam a matéria, que se aplicam
indistintamente a todos os agentes públicos, órgãos e instituições
co-responsáveis pelo atendimento de crianças e adolescentes.
Semelhantes cautelas se fazem
necessárias diante da constatação de que muitas das vítimas de
violência/abuso/exploração sexual, seja por medo, vergonha, desejo de não
prejudicar um ente querido ou outros fatores, erguem diante de si o chamado
"muro do silêncio" que, ao menos num primeiro momento, as impede de
revelar o que ocorreu. Cabe aos profissionais encarregados de atender o caso,
com o máximo de cautela, empenho - e sensibilidade, suplantar tal barreira
psicológica a partir do uso de técnicas especiais de abordagem, realizadas
inclusive forma indireta, tendo como ponto de partida o estabelecimento de
uma relação de confiança com a vítima.
Para
tanto, na imensa maioria dos casos não basta a realização de uma única
"audiência" (ou "entrevista" com a autoridade ou técnico
responsável), e muito menos é conveniente que esta seja levada a efeito numa
Delegacia de Polícia ou Fórum, ainda que numa "sala especial" para
tanto preparada (o mesmo podendo se dizer em relação a outros espaços públicos
previamente identificados como locais de atendimento de crianças e adolescentes
vítimas, como o Conselho Tutelar ou mesmo os CREAS/CRAS ou CAPs).
É preciso
compreender e respeitar a condição da criança como pessoa em desenvolvimento (e
não um "adulto em miniatura"), e como tal, não tem a mesma percepção
acerca do que se passa à sua volta que os adultos, estando sujeita a toda sorte
de influências externas, que se não forem adequadamente apuradas, consideradas
- e neutralizadas, podem comprometer o resultado das abordagens realizadas.
Assim
sendo, é preciso que tais abordagens ocorram em ambientes neutros (e de preferência
familiares e/ou agradáveis aos olhos da vítima), que não sejam previamente
identificados como locais destinados à apuração de crimes contra crianças e
adolescentes, sendo precedidas de contatos preparatórios destinados a fazer com
que a vítima se sinta à vontade perante os profissionais que irão atendê-la.
Se de um lado é necessário apurar
os fatos com celeridade [nota 4],
de outro é preciso respeitar o "tempo" da criança/adolescente, que
varia de caso a caso, a depender da idade e maturidade da vítima, e assim não
admite a prévia indicação de "prazos" para conclusão dos trabalhos,
máxime quando estes são excessivamente reduzidos.
Importante
destacar que não se está propondo a simples elaboração de um "laudo",
a partir de uma "entrevista" realizada junto à vítima, mas sim o
desenvolvimento de todo um trabalho de acompanhamento e análise do caso, a
partir de um "planejamento estratégico" levado a efeito pelos
profissionais encarregados da execução das ações respectivas, na perspectiva de
proporcionar à criança/adolescente e à sua família o atendimento e o tratamento
individualizado e especializado que lhes é devido.
A coleta das informações junto à
vítima (nem se fala em tomada de um "depoimento" - ou de
"declarações", da maneira "tradicional" ou não), se insere
nesse contexto mais abrangente, que deve ter como
"foco" central a sua "proteção integral",
tal qual previsto no art. 1º, da Lei nº 8.069/90, e respeitar as normas e
princípios que norteiam a matéria, valendo citar aqueles relacionados nos arts.
86 e 100, par. único, do mesmo Diploma Legal.
Com
efeito, a falta de articulação/integração operacional entre os órgãos e
autoridades encarregadas da proteção das vítimas de violência/ abuso/exploração
sexual e da responsabilização dos autores de tais infrações, por si só, já é
prejudicial à adequada (e célere) apuração dos fatos, sendo uma das principais
causas do verdadeiro "calvário" a que aquelas são submetidas ao serem
ouvidas em momentos diversos, por pessoas diversas, muitas das quais sem
qualquer preparo para realização das abordagens respectivas.
Para evitar que isto continue a
ocorrer, é imprescindível a elaboração e implementação, a partir do
entendimento entre os diversos órgãos e autoridades co-responsáveis pela
apuração dos fatos e pelo atendimento das crianças e adolescentes vítimas e
suas famílias, de uma verdadeira "rede de proteção",
que estabeleça um "protocolo (ou fluxo) de atendimento"
destinado a evidenciar o papel de cada um [nota 5],
tendo como verdadeiro pressuposto a
intervenção de uma equipe interprofissional
habilitada, que dará o necessário suporte técnico aos
demais.
O ideal é que tal equipe técnica
atue exclusivamente no atendimento de crianças e
adolescentes vítimas de violência [nota 6],
mas é também admissível, em especial nos municípios de menor porte, que as
abordagens necessárias sejam efetuadas por profissionais que atuam em outros
programas e/ou serviços públicos (como os CREAS/CRAS e CAPs), embora, como
mencionado anteriormente, devam para tanto ser devidamente qualificados e elaborar uma proposta de atendimento diferenciada, que contemple a
realização de visitas domiciliares e o contato com as vítimas em outros espaços
públicos e comunitários [nota 7],
sempre da forma que se mostrar mais adequada à situação psicossocial de cada
uma.
A articulação da "rede de proteção à criança e ao adolescente", vale
dizer, permitirá otimizar o atendimento também de outras demandas na área
infanto-juvenil, mas para cada caso será necessário um planejamento de ações específicas a serem
desempenhadas pelos seus diversos integrantes, que deverão conter a devida
justificativa sob o ponto de vista técnico, sendo organizadas em documento a
ser firmado por todos (o mencionado "protocolo de atuação
interinstitucional") e levado à análise e registro junto ao
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente local, órgão que
detém a competência legal e constitucional para formular e controlar a execução
da política de atendimento à criança e ao adolescente em âmbito municipal.
A partir da articulação da "rede de proteção", sempre que surgirem casos
suspeitos de violência/abuso/exploração sexual de crianças e adolescentes, os
diversos co-responsáveis pelo atendimento da situação já terão definido, ao
menos em linhas gerais, o caminho a ser trilhado tanto no sentido da
responsabilização (penal e civil) dos agentes, quanto no sentido da proteção às
vítimas, que serão desde logo atendidas por profissionais habilitados capazes
de proporcionar-lhes o tratamento especializado (e qualificado) que lhes é devido, com a celeridade prevista em lei e da forma menos "invasiva" e traumática possível.
Inserido neste contexto mais
abrangente de atendimento - e de "proteção integral"
- à vítima, a coleta de informações sobre o ocorrido junto à mesma deixa de ser
sinônimo de "tomada de depoimento/declarações em audiência" (seja sob
o modelo "tradicional", seja sob a forma do "depoimento sem
dano" ou "especial"), e passa a assumir os contornos de
verdadeira "perícia técnica [nota 8] interprofissional", que pode ser determinada
(inclusive para preservar a vítima e permitir a realização, desde logo, de um
trabalho voltado à superação do trauma sofrido) a título de produção antecipada de prova, nos moldes do previsto
pelo art. 156, inciso I, do Código de Processo Penal [nota 9].
Assim sendo, neste modelo, a
própria audiência destinada a colher as declarações da vítima é substituída por uma verdadeira perícia técnica interdisciplinar (e a participação
de mais de um profissional habilitado é de
importância capital, para que o caso seja analisado sob a ótica
interdisciplinar), com a autoridade policial e/ou o Juiz e as
partes/interessados formulando quesitos a
serem respondidos pela equipe interprofissional responsável
pelo atendimento do caso, que também deverá apresentar suas conclusões (com as justificativas devidas) e
apontar as alternativas existentes para
sua efetiva solução, tanto no que diz respeito à proteção
da vítima quanto à responsabilização criminal do(s) agente(s).
A coleta das informações
necessárias deixa de ocorrer num único ato (ou em atos sucessivos, realizados
por autoridades diversas, de maneira totalmente desconexa), de forma
improvisada e/ou mediante a singela formulação de "perguntas" à
vítima, e passa a fazer parte de uma proposta de atendimento mais
ampla, dentro de uma verdadeira "política pública intersetorial"
especificamente voltada aos casos de violência/abuso/exploração sexual de
crianças e adolescentes, que contemple a articulação/integração operacional
entre a autoridade policial, o Poder Judiciário e os órgãos técnicos a serviço
deste [nota 10] e/ou
com atuação no município.
As abordagens técnicas junto à
vítima e sua família passam a ser efetuadas com a urgência e profissionalismo que
se fazem necessários, em ambientes adequados [nota 11],
a partir de um planejamento de ações que
respeite as normas e princípios aplicáveis em matéria de infância e juventude e
as peculiaridades de cada caso (idade e maturidade da vítima, contexto familiar
e social, envolvimento de parentes ou pessoas próximas etc.), servindo de
respaldo tanto à atuação da autoridade policial responsável pela investigação
do crime em tese praticado (e seus desdobramentos posteriores, após a
instauração da competente ação penal), quanto dos órgãos encarregados de
proteção de crianças e adolescentes, como o Conselho Tutelar.
A criação de tal serviço, em
caráter oficial, com o planejamento de ações e a definição do mencionado
"protocolo" de ação interinstitucional permite que os técnicos
responsáveis pelo atendimento das crianças e adolescentes vítimas sejam
chamados a intervir assim que surja a suspeita da ocorrência em tese criminosa,
e possam, desde logo, fornecer às autoridades competentes os subsídios
necessários à tomada das medidas administrativas e judiciais cabíveis (dentre
os quais citamos, na esfera criminal, indiciamento de acusados, pedidos de
afastamento de agressores [nota 12],
prisão temporária ou preventiva e, na esfera cível, pedidos de destituição de
guarda ou tutela, suspensão ou destituição do poder familiar, além da aplicação
das medidas de proteção que se mostrarem adequadas, com o encaminhamento da
vitima e sua família aos programas e serviços correspondentes).
Consoante mencionado, a "perícia interprofissional" pode (e deve) ser
realizada a título de "produção antecipada de prova",
devendo-se tomar as cautelas necessárias para assegurar que o laudo respectivo
possa servir de prova nos processos judiciais daí decorrentes, procurando-se,
sobretudo, assegurar o contraditório àqueles que, ab initio, figurarem como responsáveis (ainda que por
mera suspeita) das condutas ilícitas apuradas.
A equipe técnica encarregada da
abordagem efetuará a análise do caso sob a ótica interdisciplinar [nota 13],
sendo que embora o "laudo pericial" ao final apresentado seja um só,
suas conclusões [nota 14] devem
ser extraídas justamente a partir da interlocução entre profissionais de
especialidades diversas. Da mesma forma, os quesitos apresentados pelas
autoridades, assim como pelas partes e interessados serão respondidos pela
equipe técnica que, se necessário, poderão ser chamadas a prestar os
esclarecimentos necessários e deverão descrever a metodologia empregada nas
abordagens realizadas (que poderão, inclusive, ser registradas em áudio e
vídeo), sem prejuízo do atendimento "protetivo" da vítima, que segue
um planejamento diferenciado e independe de
qualquer iniciativa das autoridades policial ou judiciária para ser iniciado,
sendo seu término ditado pelas necessidades específicas da vítima, tal qual
disposto nos arts. 1º c/c 100, caput e par.
único, da Lei nº 8.069/90.
Importante reafirmar, a
propósito, que a intervenção dos técnicos e autoridades co-responsáveis pelo
atendimento do caso deve obedecer aos princípios relacionados
no citado art. 100, caput e par.
único, da Lei nº 8.069/90, devendo haver flexibilidade nas
ações a serem desenvolvidas e nos prazos a serem fixados para apresentação
do(s) laudo(s) respectivo(s), que não podem ser excessivamente reduzidos, sob
pena de comprometer o resultado de todo o trabalho efetuado, que como
mencionado deve ser invariavelmente voltado à proteção integral infanto-juvenil.
Se a
implementação de tal sistemática, por um lado, parece complexa, por outro não
resta dúvida que o mecanismo proposto se mostra muito mais adequado que a
simples tomada das declarações da vítima (ainda que sob a forma de
"depoimento sem dano" ou "especial"), inclusive por
instituir uma dinâmica de colaboração - o tão falado trabalho em
"rede" - que trará enormes benefícios para o atendimento de outras
demandas a cargo das mesmas autoridades, programas e serviços com atuação na
área infanto juvenil.
Conclui-se, portanto, que as
dificuldades inerentes ao atendimento de crianças e adolescentes vítimas de
violência/abuso/exploração sexual demandam muito mais que o simples
aperfeiçoamento de mecanismos destinados à coleta de suas declarações,
reclamando uma proposta de atuação interprofissional que deve ser inserida no
contexto de uma política pública mais
abrangente, especificamente planejada e executada para que casos semelhantes
recebam a atenção devida por parte dos diversos órgãos e autoridades
co-responsáveis não apenas pela responsabilização dos agentes, mas também pela
proteção às vítimas, para o que deve contemplar múltiplas intervenções e
abordagens técnicas realizadas com o máximo de cautela, profissionalismo e
agilidade, desde o primeiro momento.
Com a proposta ora apresentada,
espera-se ampliar o debate em torno deste tema tão tormentoso, de modo que
possamos avançar ainda mais no sentido da implementação - e correta
operacionalização - da tão sonhada "rede de proteção à criança e ao
adolescente" e da efetiva "proteção integral" das crianças e adolescentes
vítimas, objetivo comum e verdadeiro dever de todos
nós.
Notas do texto:
1 Os
órgãos encarregados da segurança pública estão relacionados no art. 144 da
Constituição Federal, e dentre eles não se encontra o Conselho Tutelar, que é
um órgão de defesa dos direitos de crianças e
adolescentes por excelência.
3 Modelos
similares também são adotados em outros países, porém neste artigo nos
limitaremos a analisar a experiência brasileira.
4 Quando
do atendimento de ocorrências desta natureza é importante agir rápido, pois estas geralmente envolvem familiares e/ou
pessoas influentes da comunidade (ou mesmo autoridades públicas), que após
passado o "clamor" inicial realizarão toda sorte de
"pressão" sobre a vítima para que esta falseie a verdade, com
evidente prejuízo a ela própria e à responsabilização do(s) agente(s).
5 Protocolo/fluxo
este que deve contemplar desde a fase da notícia da ocorrência (incluindo a
criação de mecanismos de "notificação obrigatória" de casos suspeitos
de crimes contra crianças e adolescentes, nos moldes do previsto nos arts. 13 e
56, inciso I, da Lei nº 8.069/90) até o momento da apresentação do(s)
relatório(s) técnico(s) e seus desdobramentos.
6 Em
municípios que possuem uma maior demanda para este tipo de abordagem, a criação
de tal serviço especializado mostra-se verdadeiramente imprescindível, podendo sua instituição ser obtida,
inclusive, pela via judicial, como demonstra o seguinte aresto: CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE ABUSO E/OU EXPLORAÇÃO SEXUAL.
DEVER DE PROTEÇÃO INTEGRAL À INFÂNCIA E À JUVENTUDE. OBRIGAÇÃO CONSTITUCIONAL
QUE SE IMPÕE AO PODER PÚBLICO. PROGRAMA SENTINELA-PROJETO ACORDE. INEXECUÇÃO,
PELO MUNICÍPIO DE FLORIANÓPOLIS/SC, DE REFERIDO PROGRAMA DE AÇÃO SOCIAL CUJO
ADIMPLEMENTO TRADUZ EXIGÊNCIA DE ORDEM CONSTITUCIONAL. CONFIGURAÇÃO, NO CASO,
DE TÍPICA HIPÓTESE DE OMISSÃO INCONSTITUCIONAL IMPUTÁVEL AO MUNICÍPIO.
DESRESPEITO À CONSTITUIÇÃO PROVOCADO POR INÉRCIA ESTATAL (RTJ 183/818-819).
COMPORTAMENTO QUE TRANSGRIDE A AUTORIDADE DA LEI FUNDAMENTAL (RTJ 185/794-796).
IMPOSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO, PELO PODER PÚBLICO, DA CLÁUSULA DA RESERVA DO
POSSÍVEL SEMPRE QUE PUDER RESULTAR, DE SUA APLICAÇÃO, COMPROMETIMENTO DO NÚCLEO
BÁSICO QUE QUALIFICA O MÍNIMO EXISTENCIAL (RTJ 200/191-197). CARÁTER COGENTE E
VINCULANTE DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS, INCLUSIVE DAQUELAS DE CONTEÚDO
PROGRAMÁTICO, QUE VEICULAM DIRETRIZES DE POLÍTICAS PÚBLICAS. PLENA LEGITIMIDADE
JURÍDICA DO CONTROLE DAS OMISSÕES ESTATAIS PELO PODER JUDICIÁRIO. A COLMATAÇÃO
DE OMISSÕES INCONSTITUCIONAIS COMO NECESSIDADE INSTITUCIONAL FUNDADA EM
COMPORTAMENTO AFIRMATIVO DOS JUÍZES E TRIBUNAIS E DE QUE RESULTA UMA POSITIVA
CRIAÇÃO JURISPRUDENCIAL DO DIREITO. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM
TEMA DE IMPLEMENTAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DELINEADAS NA CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA (RTJ 174/687 - RTJ 175/1212-1213 - RTJ 199/1219-1220). RECURSO
EXTRAORDINÁRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL CONHECIDO E PROVIDO.
(STF. 2ª T. R. E. nº 482.611. Rel. Min. Celso de Mello. J. em 23/03/2010).
7 Mais
do que criar um "espaço" próprio destinado ao atendimento de crianças
e adolescentes vítimas de violência, o importante é elaborar uma proposta de atendimento especificamente voltada a
este tipo de demanda, cujo principal componente é justamente a equipe técnica encarregada da execução das ações
respectivas, que a rigor pode atuar a partir de qualquer local, desde que tenha
a cautela elementar de preservar a privacidade, intimidade e imagem da vítima
perante terceiros.
8 Nos
moldes do previsto pelo art. 159 e sgts., do Código de Processo Penal e art.
420 e sgts., do Código de Processo Civil, podendo servir tanto ao Juízo
Criminal quanto Cível.
9 A
questão da possibilidade ou não da realização de diligências desta natureza a
título de produção antecipada de prova já foi enfrentada pelos Tribunais,
valendo neste sentido colacionar o seguinte aresto: CORREIÇÃO PARCIAL. PLEITO MINISTERIAL DE COLETA ANTECIPADA DO DEPOIMENTO
DE PRÉ-ADOLESCENTE TIDA COMO VÍTIMA DE VIOLÊNCIA SEXUAL, MEDIANTE O PROJETO
"DEPOIMENTO SEM DANO". ACOLHIMENTO. Relevância da postulação, de
induvidosa urgência, inclusive para evitar a diluição ou alteração da prova por
via do alongamento de tempo entre a data do fato e a de inquirição da vítima.
Priorização objetiva de medida judiciária institucionalizada no denominado
"Projeto Depoimento sem Dano - DSD", que objetiva a proteção
psicológica de crianças e adolescentes vítimas de abusos sexuais e outras
infrações penais que deixam graves sequelas no âmbito da estrutura da
personalidade, ainda permitindo a realização de instrução criminal tecnicamente
mais apurada, viabilizando uma coleta de prova oral rente ao princípio da
veracidade dos fatos havidos. Precedentes no direito comparado. Medida
concedida para que a vítima seja inquirida em antecipação de prova e sob a
tecnicalidade do "Projeto Depoimento sem Dano". CORREIÇÃO PARCIAL
PROCEDENTE. (TJRS. 6ª C. Crim. Correição Parcial nº 70039896659
Rel. Des. Aymoré Roque Pottes de Mello. J. em 16/12/2010).
10 Sendo
oportuno lembrar que, na forma da lei (cf. arts. 4º, caput e par. único; 150 e 151, da Lei nº 8.069/90)
e da Constituição Federal (cf. art. 227, caput, de nossa
Carta Magna), os Tribunais de Justiça em todo o País têm o dever de contratar e qualificar equipes interprofissionais para servir tem todas as comarcas brasileiras, assim como de
destinar a maisabsoluta prioridade em suas
ações - e em seu orçamento.
11 A
rigor não há necessidade de criação de uma "sala especial" para
realização de tais abordagens, que como mencionado podem ser efetuadas nos mais
variados espaços (incluindo a própria residência da vítima). O mais importante,
em qualquer caso, é que as vítimas se sintam à vontade para interagir com os
técnicos, e que a metodologia empregada seja capaz de neutralizar o
desconforto, o estresse e todo emaranhado de sentimentos de insegurança, medo,
vergonha, raiva, dor, ressentimento, humilhação etc., que usualmente as
acometem.
13 O
trabalho em equipe é fundamental, inclusive para evitar que as eventuais falhas
conceituais e posturas preconceituosas de um determinado técnico prejudiquem a
análise do caso e suas conclusões.
14 E é
importante que tal "laudo" seja, de fato, conclusivo, sintetizando o resultado das avaliações e
as impressões e conclusões de toda equipe técnica.
Escrito
por: Murillo José Digiácomo, promotor
de Justiça no Estado do Paraná
Fonte: http://www.crianca.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=1361.
Acesso em: 22/08/2014.
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