Resumo
No
artigo busca-se apresentar como os depoimentos de crianças vêm sendo
considerados na jurisprudência referente a processos que envolvem denúncias de
abuso sexual infantil. Para tanto, se analisou jurisprudência emitida por três tribunais
brasileiros no período de agosto de 2009 a março de 2010. Empregando-se a
análise de conteúdo para avaliar o material reunido, observou-se nos julgados
ampla solicitação e valoração do depoimento de crianças, justificado pelo fato de
as ocorrências de abuso sexual se darem sem outras testemunhas ou provas, além
da necessidade de combater a impunidade em crimes dessa natureza. Outras
alegações utilizadas foram: a presunção de veracidade atribuída à palavra da criança,
a solidez e a coerência dos relatos e a inexistência de motivos para a criança
acusar falsamente o réu. Conclui-se pela indicação de estudos
interdisciplinares para se avaliarem possíveis consequências de se eleger a
palavra da criança como a principal prova acusatória.
Palavras-chave:
Depoimento infantil; Inquirição infantil; Abuso sexual infantil; Psicologia
jurídica.
Nos últimos tempos, técnicas para se colher o
testemunho de crianças[1] no sistema de justiça têm despontado no cenário
nacional, como o Projeto de Atendimento Não Revitimizante de Crianças e
Adolescentes Vítimas de Violência, lançado em maio de 2011 em São Paulo (SP), e
a Audiência Sem Trauma, metodologia já em uso na Vara de Crimes contra a
Criança e o Adolescente em Curitiba (PR). Dentre esses procedimentos, aquele
que parece ter sido o precedente é o Depoimento Sem Dano (DSD). Trata-se de
metodologia implantada pelo juiz José Antônio Daltoé Cezar, em 2003, na 2ª Vara
de Infância e Juventude da cidade de Porto Alegre-RS, e que se destina à
inquirição[2] de crianças supostamente vítimas ou testemunhas de crimes,
especialmente quando há suspeita de abuso sexual. Segundo informa Conte (2008),
esse procedimento vem sendo empregado em diversos municípios gaúchos.
No Depoimento Sem Dano, um técnico treinado –
preferencialmente psicólogo ou assistente social – realiza a inquirição da
criança em recinto distinto à sala de audiências. O uso de fones de ouvido pelo
receba questões encaminhadas pelo juiz, que devem ser direcionadas à criança.
Um sistema de áudio e vídeo possibilita que as salas se interliguem,
facilitando o acompanhamento do relato por aqueles que se encontram no recinto
destinado às audiências. Todo o depoimento é filmado, transcrito e anexado ao
processo para fins de consulta e de prova judicial, alegando-se que dessa
maneira se evitariam novas inquirições[3] e a possível revitimização da criança
(Daltoé Cezar, 2007).
O Código de Processo Penal Brasileiro (CPP)
dispõe, em seu artigo 208, que os menores de 14 anos não prestam compromisso de
dizer a verdade quando chamados a testemunhar, indicação mantida no projeto de
lei nº 156, de 2009, do Senado Federal, que dispõe sobre a reforma do Código
de Processo Penal. Este novo projeto, todavia, prevê, no capítulo II, Seção
III, as “Disposições Especiais Relativas à Inquirição de Crianças e
Adolescentes”, com descrição de procedimento semelhante ao Depoimento Sem Dano.
Nota-se, contudo, que mesmo antes da possível
aprovação desse projeto de lei, o testemunho de crianças em processos judiciais
vem sendo obtido por meio de técnicas que teriam como proposta colher o
depoimento infantil sem prejuízos, ou seja, sem dano, sem trauma e sem
revitimização, técnicas denominadas de depoimentos especiais.
Nesse contexto, toma corpo o argumento de que, na
falta de provas materiais, a palavra da criança seria de suma importância no
processo judicial, pois em muitas situações essa seria a única prova possível
de ser produzida (Leite, 2008). Alude-se também, como justificativa, ao artigo
12 da Convenção Internacional sobre os direitos da criança (1989), na medida em
que este expõe o direito de a criança ser ouvida – quer diretamente, quer por
intermédio de um representante ou órgão apropriado – em todo processo judicial
que a afete (Daltoé Cezar, 2007).
Como mostra a literatura que abrange o tema
inquirição de crianças, tem sido comum operadores do direito argumentarem que o
depoimento de infantes nos processos judiciais colabora com o combate à
impunidade, como também facilita a obtenção de provas (Daltoé Cezar, 2007;
Dias, 2006; Leite, 2008).
Observa-se que tal compreensão é compartilhada por
alguns psicólogos e assistentes sociais empenhados na realização de técnicas
para obtenção do testemunho infantil, como Tabajaski (2009), por exemplo.
Em contrapartida, outros autores que se debruçam no
estudo da temática mostram certa preocupação quanto ao fato de se privilegiar a
criança como instrumento de provas, considerando que seu relato pode ser apenas
um dos elementos do conjunto probatório. Seguindo esse viés de análise, Arantes
(2009) questiona o uso dos chamados depoimentos especiais com crianças,
técnicas que, para a autora, teriam como propósito uma corrida desenfreada ao
combate da impunidade:
Perguntamos se ao se elevar como objeto de
preocupação a responsabilização do abusador, não se corre o risco de um
deslocamento da discussão, uma vez que ao remeter à ideia de resolutividade ao
sistema de justiça, perde-se de horizonte o maior interesse pela proteção da
criança/adolescente, em nome da produção de prova (p. 11).
Azambuja (2008), discutindo essa questão, afirma que
o direito de a criança ser ouvida, disposto na Convenção Internacional sobre os
Direitos da Criança (1989), não deve ser igualado à participação em inquérito,
explicando a autora que:
Direitos da Criança (artigo 12), necessariamente não
exige o uso da palavra falada, porquanto o sentido da norma é muito mais amplo,
significando a necessidade de respeito incondicional à vítima, como pessoa em
fase especial de desenvolvimento (Azambuja, 2012, p. 18).
Por esse motivo, ou seja, constantes convocações
judiciais para as crianças prestarem depoimentos por intermédio das novas
técnicas, se decidiu verificar como algumas Câmaras Criminais, responsáveis por
decisões em segunda instância, vêm tratando o assunto quando o relato infantil
se deu em processos judiciais nos quais se apura a ocorrência de abuso sexual.
Optou-se, portanto, por realizar pesquisa junto à
jurisprudência emitida por alguns tribunais brasileiros, com objetivo de
apontar o posicionamento dos acórdãos, especialmente quanto à argumentação
utilizada para a aceitação e a valoração, ou não, de depoimentos de crianças.
Método
Na referida investigação, com proposta de cunho qualitativo,
realizou-se levantamento da jurisprudência emitida por Tribunais de Justiça de
três estados da Federação: Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Os
julgados, localizados por meio das páginas eletrônicas dos tribunais
mencionados, foram emitidono período compreendido entre agosto de 2009 e março
de 2010. Optou-se por examinar esses três Tribunais pelo fato de se ter
observado, quando da realização de pesquisa bibliográfica sobre o tema, que
nesses estados da federação se concentrava grande parte das discussões sobre o
assunto.
A busca da jurisprudência foi realizada
empregando-se as seguintes palavras-chave: “depoimento sem dano”; “atentado
violento ao pudor” E “menor”; “palavra de/do/da menor”; “depoimento de/do/da
menor”; “abuso sexual” E “depoimento de/do/da menor”; “inquirição de/do/da
menor”; “oitiva de/do/da menor”. A análise do material foi empreendida a partir
das ementas e do inteiro teor dos julgados.
Ao todo se reuniram 452 acórdãos, dos quais 35
pertenciam ao Tribunal de Justiça gaúcho, 163 foram emitidos pelo Tribunal de
Justiça carioca e 254 produzidos pelo Tribunal de Justiça paulista. Dentre os
selecionados do TJRS, 31 foram pronunciados por Câmaras Criminais e quatro por
Câmaras Cíveis. Dos que foram prolatados pelo Tribunal de Justiça do Estado do
Rio de Janeiro, 160 eram provenientes de Câmaras Criminais e três de Câmaras
Cíveis, e do TJSP, 253 foram proferidos por Câmaras Criminais e um por Câmara
Cível. No presente trabalho não foram efetuadas análises dos oito julgamentos proferidos
por Câmara Cíveis.
Com o material impresso, procedeu-se à leitura e ao
exame das ementas visando agrupar as que empregavam argumentação semelhante,
pois inicialmente foi possível observar que certos posicionamentos eram
recorrentes, indicando a visão dos julgadores sobre o tema. Após a compilação
do material coletado iniciou-se a análise de conteúdo do mesmo (Gomes, 1994)
usando-se o inteiro teor dos acórdãos, a fim de circunscrever as justificativas
empregadas para que houvesse, ou não, a valoração do testemunho de crianças
supostamente vítimas de abuso sexual. A divisão em categorias foi estabelecida
após minuciosas leituras dos acórdãos, quando se procurou verificar o teor da
argumentação presente em tais julgados. Cumpre esclarecer, ainda, que os
exemplos citados ao longo do texto buscam colaborar com a compreensão do
disposto na jurisprudência pesquisada.
Resultados
Nos julgados levantados verificou-se significativa
valoração da palavra de crianças que, supostamente, teriam sofrido abuso sexual,
principalmente pelo fato de, nesses casos, esta ser a única prova que se
considera possível de ser obtida. Assim sendo, neste trabalho optou-se por
analisar, inicialmente, argumentos que serviram de embasamento para tal
valoração, passando-se, posteriormente, ao exame das razões pelas quais o
depoimento foi considerado insuficiente como prova condenatória.
I – Justificativas para a valoração do testemunho infantil
Serão dispostos, a seguir, os argumentos presentes nos
julgados que consideraram o testemunho infantil como prova condenatória.
1. Inexistência de outras provas
Foi possível observar que a necessidade de inquirição
infantil era justificada nos julgados, principalmente, pelas peculiaridades das
condições nas quais esse tipo de crime costuma ser praticado: às escondidas,
sem a presença de testemunhas e, por vezes, sem vestígios físicos, não
existindo, portanto, outras provas a considerar.
Certo é que, na apuração desse tipo de crime hediondo,
em regra, cometido às escondidas, na clandestinidade, o depoimento da ofendida
tem grande validade e é de grande relevância e, na maioria dos casos, é a única
prova existente. São crimes que exigem o isolamento, o afastamento do agressor,
de sorte que negar crédito à ofendida quando aponta quem a atacou é desarmar totalmente
o braço repressor da sociedade (Apelação nº 200705005438, p. 6, TJRJ).
2. O baixo número de condenações
A obtenção do testemunho de crianças justificou-se também
pelo argumento de que esta seria uma maneira de se combater a impunidade nesse
tipo de crime, tal como demonstra o texto do acórdão abaixo:
É cediço que nos crimes contra os costumes, praticados
quase sempre na clandestinidade, sem a presença de testemunhas, as palavras das
vítimas assumem papel preponderante na identificação da autoria, porque são
elas quem mantém contato direto com o infrator. Assim, quando essas palavras se
apresentam firmes, coerentes, não se depreendendo intenção outra que não
relatar os fatos efetivamente ocorridos, cumpre aceitá-la, sob pena de tornar
impunes a maioria dos crimes sexuais (Apelação nº 990091081612, p. 11, TJSP).
3. A consistência e a solidez dos relatos infantis
Em decorrência das circunstâncias em que geralmente
ocorrem tais crimes, foi comum encontrar a alegação de que se deve dar especial
valor probatório ao relato da vítima, desde que se entenda que sua palavra é
“robusta, segura, consistente” ou “sem intenção de acusar falsamente o réu”.
Adjetivos como firme, coesa, coerente e convincente também eram empregados nos
acórdãos, na referência ao relato da criança, tal como se pode observar em
trecho da Apelação nº 70029342227 (TJRS):
A materialidade e a autoria estão devidamente
comprovadas pelo depoimento da vítima, perante a autoridade policial e em
juízo, seguro e coerente, corroborado pelas palavras da mãe, também ouvida. A
vítima detalha todo o ocorrido, o que é suficiente para o juízo condenatório
(p. 1).
No decorrer do levantamento empreendido junto aos
julgados, notou-se que muitos não apresentavam informações quanto à idade da
criança no momento em que foi colhido o depoimento, o que dificultou uma busca
mais sistematizada deste dado. Contudo, em algumas apelações criminais, mesmo
se reconhecendo a tenra idade da criança, seu depoimento foi obtido.
Pode-se recordar que a apelação n° 200805006275, do
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, faz menção à inquirição de uma
criança de cinco anos, que teve seu relato considerado como prova.
Constatou-se, ainda, em alguns casos, uma extensa
lacuna temporal entre o suposto crime de abuso sexual e a tomada de depoimento
da criança. Dentre eles, está a apelação nº 70029089794, do Tribunal do Estado
do Rio Grande do Sul, no qual este intervalo chegou a nove anos, uma vez que os
fatos teriam ocorrido quando a criança contava 5 anos de idade e somente aos 14
anos colheu-se seu depoimento, por meio da técnica denominada Depoimento Sem
Dano. Já o trecho do acórdão que segue provém do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo e também corrobora tal apontamento:
Por sua vez, [...] [a suposta vítima], com apenas 06
(seis) anos de idade na data dos fatos, narrou com riqueza de detalhes, na
Delegacia de Polícia, a conduta ilícita do réu. [...]. Em Juízo, ouvida após 07
(sete) anos das declarações prestadas na Delegacia de Polícia, a vítima apenas
se recordava
que, à época dos fatos, “... tinha caído um negócio
branco na minha mão ou na minha perna...”. Disse, ainda, que tinha medo do réu,
pois era grosseiro com as palavras [...]. (Apelação nº 990090540907, p. 3,
TJSP).
4. Presunção de veracidade do depoimento infantil
Na jurisprudência examinada encontrou-se também a
justificativa de que o relato infantil seria detentor de presunção de
veracidade, como demonstra o trecho a seguir:
Nos crimes sexuais, secretos pela própria natureza,
a palavra da ofendida muitas vezes é a única prova de que pode se valer a
acusação, assume papel preponderante e goza de presunção de veracidade, sempre
que verossímil, coerente e amparada por incensurável comportamento anterior.
(Apelação nº 990090737190, p. 7, TJSP).
Junto com a presunção da veracidade do relato da
vítima era recorrente o argumento de ausência de motivos, por parte da criança,
para incriminar injustamente o réu.
A palavra da vítima, em casos como dos autos, assume
papel preponderante e goza da presunção de veracidade, assumindo especial
relevância [...], merecendo total crédito, não sendo crível à condição humana
que alguém incrimine inocente - quão mais pela ingenuidade inerente à idade da
vitima – dai porque seu relato ser merecedor de todo o crédito, mesmo porque
amparado pelo conjunto probatório. (Apelação nº 990080599330, p. 5, TJSP).
5. Valor secundário das provas materiais
Outro fator que despontou na análise do material diz
respeito à primazia que a palavra da criança parece ter assumido no conjunto
das provas coletadas ao longo do processo, como, por exemplo, em relação ao
exame de corpo de delito.
Com efeito, as provas existentes no caderno
processual são suficientes para o julgamento de procedência do pedido
condenatório deduzido na denúncia. Os depoimentos prestados pela vítima
mostraram-se sempre consistentes e seguros, bem como convergentes com os
depoimentos das demais testemunhas em minudências.
Importante enfatizar que, em se tratando de crimes
contra os costumes (que, por natureza, são praticados às ocultas, sem a
presença de testemunhas), é preciso reconhecer especial valor à palavra da
vítima. A corroborar essa conclusão, ainda, o laudo médico sobre o exame
realizado sobre a vítima. (Apelação nº 70027218353, p. 8, TJRS).
É possível notar que mesmo quando existem provas
materiais, ou quando perícias médico-legais indicam a ocorrência de abuso,
essas foram mencionadas apenas ao final do julgado, quase como um adendo,
evidenciando-se, em contrapartida, a força atribuída ao relato da criança, como
disposto na apelação acima.
Observou-se, também, que mesmo quando a confissão do
réu é exposta em mais de um momento no decorrer do processo, o relato da
criança continua sendo solicitado e visto como fundamental à formulação ao
decreto condenatório.
O conjunto probatório é coerente e harmônico com o
relato detalhado e seguro do ofendido, tendo, inclusive, o apelante, confessado
o delito, tanto em sede policial quanto na entrevista com a assistente social.
Além disso, a jurisprudência é pacífica quanto ao valor do depoimento da vítima
em face das circunstâncias em que esta espécie de delito normalmente ocorre.
[...]. Como se vê, não há nada que retire a credibilidade do depoimento da
vítima, o qual está em consonância com as declarações prestadas pelo acusado na
delegacia, com o laudo de avaliação psicológica e estudo social e com o exame
áudio-gráfico da gravação feita pelo ofendido. Deste modo, a condenação não foi
lastreada unicamente na palavra da vítima, mas se o fosse, a jurisprudência é pacífica
quanto ao valor relevante do depoimento da vítima, em face das circunstâncias
em que esta espécie de delitos normalmente ocorrem, visto que cometidos em
locais em que ninguém mais possa testemunhar, além da vítima. (TJRJ, Apelação
criminal nº 20070502681, pp. 1-6).
II – Quando o depoimento infantil não sustentou uma condenação
Quanto à jurisprudência em que não se aceitou o
depoimento infantil como prova para a condenação do réu – 44 julgados dentre os
pesquisados –, alguns dos motivos apresentados foram: existência de
contradições entre a palavra da vítima e outros elementos probatórios,
notadamente depoimento de outras testemunhas e de informantes; versão da
suposta vítima considerada fantasiosa ou como forma de represália ao réu;
divergências em pontos importantes do depoimento infantil; pouca idade do
depoente; deficiência mental da criança; verbalização que não demonstrou
firmeza; prova que se resume apenas ao depoimento da criança. Nesses casos, o
judiciário aplicou o princípio in dubio pro reo, isto é, quando existiam
dúvidas intransponíveis, a decisão seria de não incriminar o réu.
Apesar de o parecer técnico ter apontado a
ocorrência de abuso e de o laudo psicológico ter apontado o réu como sendo o
autor do fato, o conjunto probatório não oferece a certeza necessária à
condenação. [...]. Em juízo, a criança, na primeira oportunidade em que foi
ouvida, através do dito “Depoimento sem Dano”, não disse nada com nada [...].
Não há como dar credibilidade ao mencionado depoimento. Na segunda oportunidade
em que foi ouvido, da mesma forma, nada referiu contra o réu. Ao contrário,
disse gostar dele. [...]. Absolvição mantida. (Apelação nº 70033113531, pp.
1-2, TJRS).
Como descrito no julgado acima, pode-se compreender
que na situação em apreço a palavra da criança também foi alçada ao lugar
principal, pois a fragilidade de seu relato parece ter pesado mais do que as
conclusões dos pareceres técnicos.
Aponta-se, ainda, que em apenas um julgado foi citada
a preferência por não se inquirir a criança em juízo por se acreditar que, na
situação específica, seu testemunho não seria apropriado.
Foram poucas as decisões que alegaram necessidade de
outras provas além da palavra da criança para que se pudesse fundamentar a condenação,
tal como exposto no trecho da seguinte ementa:
A palavra da vítima desses crimes, normalmente praticados
na clandestinidade, assume grande valor e possibilita a condenação quando
amparada em outras provas e indícios coletados na instrução como ocorre nos
presentes autos (Apelação nº 993070982730, p. 4, TJSP).
Notou-se, todavia, que no conjunto dos julgados analisados
muitos seguiam em sentido diverso do apresentado acima, como se demonstra a
seguir:
Em delitos de natureza sexual, salvo exceções, a palavra
da ofendida é de basilar influência no mosaico probante, podendo mesmo a
convicção resignar-se tão só em sua palavra, considerando-se a clandestinidade
em que se desenvolve o incidente (Apelação nº 993080312893, TJSP).
Ou ainda:
Não havendo porque se duvidar da palavra da vítima, nestas
hipóteses, o mínimo a ser feito é aceitá-la, como tem feito a doutrina e jurisprudência.
Não se iria acusar inocente, sem mais nem menos. Por isso a relevância dos
relatos (TJSP: Apelação criminal nº 990090937661; Apelação criminal nº
993071274275; Apelação criminal nº 990091017663).
Discussão
Como aponta a pesquisa empreendida junto à jurisprudência,
a inquirição de crianças encontra justificativa com base no combate à
impunidade, na inexistência de outras provas e na constatação de solidez de
seus relatos, que passam a ser vistos como detentores de presunção de
veracidade, deslocando o valor das provas materiais para um patamar secundário.
Pode-se recordar, contudo, que diversos
pesquisadores já assinalaram (Brito, Ayres & Amendola, 2006; Théry, 1992)
que quando o depoimento da criança passa a ter valor de prova única, como se
viu em alguns dos julgados analisados, se estaria atribuindo responsabilidade
ou capacidade jurídica à mesma, na medida em que, na maior parte desses
processos, são as palavras das crianças que decidirão o destino dos acusados
que, aliás, muitas vezes são seus familiares.
Além disso, vários autores alertam para o fato de que ao
se instituir a inquirição infantil como prática corrente não se estaria falando
de um direito de a criança ser ouvida, mas de uma obrigação, sendo improvável
que a criança saiba que tem o direito de permanecer calada ou, ainda, de não se
manifestar em juízo. Dekeuwer-Défossez (1999) entende que a indicação de ser
levada em conta a palavra da criança necessita ser vista sob o viés da proteção
que deve ser assegurada àquela, na medida em que não se pode atribuir à criança
decisões difíceis.
Cabe lembrar, ainda, que no contexto da inquirição
diversas perguntas são feitas às crianças, que devem respondê-las. Quando se
tem como proposta ouvir uma criança, a postura deve ser outra, deixando se que
surjam tanto suas palavras, seus relatos, como seus silêncios ou a afirmação de
que ela não sabe responder o que está sendo perguntado. Para Mathis (1992), o
que se torna evidente nos procedimentos de inquirição é o direito de a criança
dizer sim ou não, enquanto os termos “quase” ou “não sei” não costumam ser bem
aceitos pelos operadores do direito.
Nessas situações de possíveis abusos sexuais também
não se deve desprezar o fato de a criança amar e ao mesmo tempo odiar o
acusado, como ressalta Camdessus (1993). Quando este último é membro de sua
família, por vezes a criança gosta da pessoa, porém não quer que o abuso
persista. Portanto, não se poderia aferir a ocorrência ou não do abuso apenas
por a criança dizer que gosta ou desgosta do réu. Além disso, receios sobre o
desdobramento do fato e sobre o futuro do acusado também podem pesar. Assim, as
acusações inverídicas não seriam, necessariamente, motivadas por a criança não
ter apreço pelo réu, como parecem expor alguns julgados.
Como se sabe, os casos que envolvem suspeita de
abuso sexual apresentam grande complexidade e devem ser avaliados com extremo
cuidado. Como foi possível notar nos julgados pesquisados, não há idade mínima
para a criança ser considerada como testemunha no sistema judiciário. Da mesma
maneira, pode-se recordar que o projeto de lei em tramitação no Brasil também
não estabelece esse critério, havendo, portanto, possibilidade de inquirição de
crianças de qualquer idade.
Na jurisprudência estudada, observou-se certa
desconsideração quanto à ocorrência de mudanças ao longo do desenvolvimento
infantil, de modo que a fase em que se encontravam as crianças quando da tomada
de depoimento, por vezes, era significativamente diversa daquela em que teria
ocorrido o delito.
Destarte, pode ser que, não raras vezes, o que foi
verbalizado por outras pessoas durante esse intervalo de tempo tenha sido
incorporado por essas crianças como suas verdades e como parte de suas
histórias de vida, o que colaboraria para que transmitissem relatos
distorcidos. Essa forma de construção da verdade ou da versão de cada um pode
distanciar-se da verdade real buscada pelos operadores do direito penal. Dessa
maneira, entende-se que não seria a inexistência de motivo para a criança
querer prejudicar o réu que traria certeza da ocorrência do fato, alegação que
se encontrou em alguns acórdãos.
Além disso, como se sabe, o abuso sexual pode
ocorrer junto com alguma manifestação de afeto do adulto para com a criança,
não sendo caracterizado por esta como um ato abusivo, significação que será
atribuída pelas palavras e interpretações de terceiros.
Nesse sentido, Bert (2010, p. 28) considera que as
crianças podem ser boas testemunhas de um fato, todavia, “são sensíveis ao
prestígio de um adulto”, querendo lhe agradar, além de comumente não gostarem
de dizer que não sabem algo. Esses, talvez, sejam alguns dos fatores que
levaram Mathis (1992) a questionar como se poderia ter certeza de que as crianças
possuem meios para diferenciar seu relato daqueles pronunciados por adultos dos
quais dependem.
Rosseti-Ferreira, Solon e Almeida (2011, p. 63- 64),
estudiosas do desenvolvimento infantil, ao analisarem como se deve ouvir e
conversar com crianças quando se pretende obter dados com estas, ressaltam:
Acredita-se que, no dia a dia, a criança constrói,
com o auxílio das experiências que vêm das narrativas com o outro, seus
próprios significados sobre o mundo e sobre si, e se relaciona com o mundo com
base nesses significados. Essas narrativas não são homogêneas, pois ela as
elabora na interação com diversos parceiros em diferentes contextos. Portanto,
elas não podem ser consideradas a revelação da “verdade”. Por isso, é
importante ressaltar que as conversas com as crianças não devem servir para
estabelecer a verdade, nem tão pouco podem ser passíveis de generalização.
Bert (2010), também preocupado com a primazia dada
aos testemunhos infantis, recorda que no conhecido caso d’Outreau, no qual
diversos adultos foram acusados, na França, de abuso sexual contra várias
crianças, peritos psicólogos e psiquiatras que examinaram as testemunhas
(adultos e crianças) atestaram serem seus relatos críveis. No decorrer do
processo, após várias pessoas se encontrarem em prisão preventiva, se concluiu
que, apesar de os peritos encarregados de examinar crianças e adultos terem
apontado que os relatos eram verossímeis, treze pessoas acusadas de terem
cometido abuso sexual eram inocentes. A partir dessa situação, o autor chama
atenção para a diferença entre credibilidade de um relato e a verdade de um
fato, mostrando que um relato pode ser crível apesar de não ser real.
Dessa forma, poder-se-ia pensar no peso atribuído à
palavra das crianças nos julgados analisados na pesquisa que se desenvolveu,
quando se observou ser recorrente o argumento da solidez dos relatos infantis,
aos quais foi atribuída presunção de veracidade e ausência de motivos para
incriminar injustamente o réu. Como se viu, é preciso cuidado nesse tipo de
interpretação, pois não se trata, muitas vezes, de calúnias de crianças contra
terceiros, na medida em que pode haver diferenças entre a verdade da criança ou
a versão narrada por esta e a verdade do fato. Além disso, pode acontecer de o
abuso, ou seja, o fato, ser real, porém ter sido cometido por pessoa distinta
da que está sendo acusada, como aponta Brito (2011, p. 116) “na situação
fictícia, mas verossímil”, que narra em seu ensaio. Crianças podem não ter
motivos para incriminar alguns, como alegado em certos julgados, porém podem
ter motivos para proteger outros. Nesses casos, o relato da criança, sem
dúvida, pode ser caracterizado como crível, porém, não se pode olvidar que o
julgamento em questão é de uma pessoa acusada de ter praticado determinado ato,
portanto, como conhecido, as provas reais de sua culpa são fundamentais para
esclarecer qualquer fato.
Considerações
finais
A expectativa da pesquisa que se desenvolveu foi a
de que, a partir dos julgados coletados, se possa melhor compreender a
argumentação que vem sendo utilizada para se proceder aos depoimentos de
crianças que supostamente teriam sido vítimas de abuso sexual.
Na avaliação empreendida no material selecionado,
foi possível observar como vem sendo considerado e valorado nos julgados o
testemunho de crianças, notando-se, além da preocupação com a garantia de
direitos infantis, uma evidente busca de prova para o convencimento do fato,
transformando-se o relato da criança na principal e, por vezes, única prova.
Nos acórdãos analisados, o que se evidencia é que o
testemunho infantil não é considerado válido apenas quando corroborado por
outros elementos de prova.
De modo diverso, o que ocorre é que esse testemunho
assume lugar de destaque em julgamentos de crimes de abuso sexual justamente
pelo fato de inexistirem outras provas. Diante desse resultado, concorda-se com
a perspectiva trazida por Théry (1992) e por Mathis (1992) de que se possa
estar atribuindo responsabilidade jurídica às crianças que, no lugar de
pequenos depoentes, selam destinos de seus familiares, muitas vezes sem ter
ideia do alcance e da reverberação das palavras proferidas no contexto jurídico,
relatos que parecem se tornar, agora, um divisor de águas em decisões
judiciais. Nesse cenário, recai sobre seus ombros o peso da condenação de
familiares, com os inúmeros desdobramentos que a situação acarreta.
Nesse momento de intensos debates a respeito do
projeto de lei que dispõe sobre a reforma do Código de Processo Penal,
conclui-se pela pertinência de um aprofundado debate interdisciplinar sobre o
tema antes da aprovação final desse texto legal. Compreende-se que tais
discussões são urgentes e que têm por missão ultrapassar a acirrada dicotomia
entre aqueles que se dizem favoráveis às técnicas de depoimentos especiais de
crianças e aqueles que assumem posição contrária, como já assinalaram Brito e
Parente (2012). Nesse sentido, o artigo aqui apresentado não teve a pretensão
de definir certezas ou pretensas verdades sobre tema tão complexo. Procurou-se
mostrar, contudo, que diversos são os fatores que se devem considerar, analisar
e pesquisar para que se busque uma melhor definição sobre o assunto em pauta.
Referências
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[1]
Para fins deste artigo será considerada criança todo ser humano com menos de 18
anos de idade, conforme expõe o artigo 1º daConvenção Internacional sobre os
Direitos da Criança.
[2]
Termo jurídico referente à tomada de depoimento em juízo. De acordo com o Vocabulário
Jurídico de Silva (2010), o vocábulo inquirir pode ser entendido
como “fazer perguntas ou indagar alguém sobre fatos de seu conhecimento, a fim
de que sejam os mesmos esclarecidos ou apurados, Nessa razão, tomar depoimento
equivale a inquirir” (p. 748). Dessa forma, o presente trabalho utiliza o
referido termo em seu sentido jurídico, e não, pura e simplesmente, como uma
indagação ou um questionamento.
[3]
Daltoé Cezar (2007, p. 57) refere-se a “inquirição, escuta ou ouvida da criança
em juízo”, aparentemente como sinônimos.
Escrito por: Leila Maria Torraca de Brito e Joyce
Barros Pereira, ambas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-82712012000200012.
Acesso em: 22/08/2014.
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